Autor: Richard Carrier
Tradução: Gilmar Santos, publicado originalmente no Rebeldia Metafísica

Nota do tradutor: No século XVII o matemático Blaise Pascal formulou seu infame argumento pragmático a favor da crença em Deus em sua obra “Pensées”. O argumento funciona da seguinte maneira:

Se você erroneamente acredita que Deus existe, você não perde nada (supondo que a morte é o fim absoluto), ao passo que se você acredita corretamente que Deus existe, você ganha tudo (eterna bem-aventurança). Mas se você, corretamente, não acredita que Deus existe, você não ganha nada (a morte termina tudo), ao passo que se você, erroneamente, não acredita que Deus existe, você perde tudo (danação eterna).


Como você deveria apostar? Independentemente de qualquer evidência contra ou a favor da existência de Deus, Pascal argumentou que o fracasso em aceitar a existência de Deus acarreta o risco de perder tudo sem chance de recuperar qualquer coisa. A melhor aposta, portanto, é aceitar a existência de Deus. Inúmeras objeções tem sido apresentadas contra a aposta: que uma pessoa não pode simplesmente decidir acreditar em algo que para ela é patentemente falso; que a aposta se aplicaria tanto à crença no Deus errado quanto à descrença em todos os deuses, deixando o crente em qualquer deus em particular na mesma situação do ateu e do agnóstico; que Deus não recompensaria a crença nele baseada unicamente numa aposta segura; e por aí vai.

Richard Carrier, historiador americano e ex-editor-chefe do Internet Infidels, constrói um argumento, quase uma piada, mas de uma lógica impecável, que refuta definitivamente a célebre aposta.

Argumento 1: Quem vai para o céu?

É uma crença comum que somente os moralmente bons deveriam habitar o céu, e esta é uma crença razoável, amplamente defendida por teístas das mais variadas denominações. Suponha que exista um Deus que está nos vigiando e selecionando quais almas dos falecidos levar para o céu, e este Deus realmente deseja que somente os moralmente bons povoem o paraíso. Ele provavelmente selecionará somente dentre aqueles que se empenharam de maneira significativa e responsável em descobrir a verdade. Pois todos os outros são indignos de confiança, sendo cogntiva ou moralmente inferiores, ou ambos. Também será menos provável que estes últimos alguma vez descubram e se comprometam com crenças verdadeiras sobre o certo e o errado. Isto é, se eles possuem uma preocupação genuína e significativa em fazer o que é certo e se absterem do erro, segue-se necessariamente que eles devem possuir um interesse significativo e honesto em conhecer o certo e o errado. Uma vez que este conhecimento exige conhecimento sobre vários fatos fundamentais acerca do universo (como, por exemplo, se existe um Deus), segue-se necessariamente que tais pessoas devem se comprometer de maneira honesta e significativa em buscar, verificar e confirmar a correção de suas crenças acerca de tais assuntos. Logo, somente tais pessoas podem ser morais e confiáveis o bastante para merecer um lugar no Céu — a menos que Deus deseje atulhar o paraíso com gente moralmente preguiçosa, irresponsável ou indigna de confiança.

Mas somente dois grupos se encaixam nessa descrição: teístas intelectualmente comprometidos mas críticos, e não-teístas igualmente comprometidos mas críticos (o que abraange tanto ateus quanto agnósticos, humanistas seculares mais especificamente, no sentido mais básico). Ambos os grupos possuem um compromisso honesto e significativo com a busca, a verificação e a confirmação da correção de suas crenças sobre deus (por exemplo); de maneira que suas crenças sobre o certo e o errado provavelmente serão corretas. Nenhum outro grupo pode reivindicar isto. Qualquer um que esteja sinceramente interessado em distinguir entre o certo e o errado deve estar arduamente empenhado em descobrir se certas afirmações são verdadeiras, incluindo “Deus existe”, e deve tratar esse assunto com tanta dedicação e responsabilidade quanto qualquer outra questão moral. E os únicos dois tipos de pessoas que fazem isso são aqueles teístas e não-teístas que devotam suas vidas a examinar os fatos e determinar se estão corretos.

Argumento 2: Por que este mundo?

É uma crença comum que certos mistérios, como males inexplicados no mundo e o silêncio de Deus, são explicáveis como um teste, e esta é uma crença razoável, amplamente defendida por teístas das mais variadas denominações. Afinal, se nenhum teste fosse necessário, então Deus poderia e deveria, como resultado de sua compaixão e perfeita eficiência, simplesmente selecionar os candidatos ao nascer e dispensar qualquer vida real neste mundo, já que Deus conheceria de imediato seus méritos.

O livre-arbítrio não pode refutar esta conclusão, já que se Deus não pode nos conhecer porque podemos livremente nos alterar por completo, então Deus não pode ocupar o céu com pessoas confiáveis: pois qualquer um no céu pode através de um ato livre, inesperado e espontâneo efetuar um ato maligno ou tornar-se maligno. E, dada uma eternidade, é altamente provável que a maioria da população celeste fará alguma coisa ruim. Tudo considerado, se o livre-arbítrio for um obstáculo ao propósito divino, então Deus não pode prever quem irá ou não fazer o mal e assim ele não pode separar aqueles que serão eternamente bons daqueles que não serão, a não ser por algum tipo de teste indutivo.

Uma vez que aqueles que serão eternamente bons devem naturalmente ser raros em comparação com o conjunto de pessoas aparentando ser boas no momento de suas mortes, segue-se que, na ausência de um teste indutivo confiável, a maior parte da população celeste não será genuinamente boa. Disso resulta que um Deus que deseje melhores resultados provavelmente distinguiria os genuinamente bons, e portanto dignos, dos indignos e desonestos, sujeitando todos os candidatos a um teste confiável, e seria razoável concluir que este mundo existe somente para esta finalidade.

Argumento 3: Não há Deus ou há um Deus Maligno

Se demonstrado com fortes evidências que um deus deve ser ou maligno ou inexistente, uma pessoa genuinamente boa não acreditará em tal deus, ou, se acreditar, não dará um parecer favorável a tal deus ( por meio de adoração ou outras demonstrações de aprovação, já que os bons não aprovam o mal). A maioria dos teístas não negam isto, preferindo negar que a evidência seja forte. Mas parece irrefutável que existem evidências poderosas de que deus deve ou ser malévolo ou inexistir.

Por exemplo, na Bíblia Abraão desfaz-se de sua humanidade e de sua moralidade quando Deus ordena que ele mate seu filho Isaque, e Deus o recompensa por colocar a lealdade acima da moralidade. Isto provavelmente é ruim — um deus bom imaginaria que Abraão renunciaria ao medo e à lealdade e colocaria a compaixão em primeiro lugar e se recusaria a cometer um ato de maldade, e o recompensaria por isso, não pela submissão. De maneira similar, Deus deliberada e inescrupulosamente infligiu tormentos e injustiças sobre Jó e sua família apenas para vencer um debate com Satanás. Isto provavelmente é ruim — nenhum bom deus causaria tantos danos por tão trivial mesquinharia, muito menos preferiria o sofrimento humano face ao desafio provocativo de um mero anjo. E então Deus justifica estas injustiças a Jó alegando ser capaz de fazer o que quiser, de fato dizendo que está além da moralidade. Isto provavelmente é ruim — um bom deus nunca afirmaria estar além do bem e do mal. E o mesmo vale para todos os massacres genocidas e injunções bárbaras ordenadas por Deus na Bíblia. Então há todos os males naturais no mundo (como doenças e terremotos) e todas as maldades humanas não impedidas (por exemplo, Deus não move uma palha para deter criminosos ou impedir crimes hediondos, etc). Somente um Deus Malévolo provavelmente permitiria tais coisas.

Argumento 4: O Teste

Dos dois grupos abraangendo os candidatos viáveis a habitantes do céu, somente não-teístas reconhecem ou admitem que esta evidência implica fortemente que Deus deve ser malévolo ou inexistente. Consequentemente, somente a resposta dos não-teístas corresponde à esperada para pessoas moralmente boas. Isto é, uma pessoa moralmente boa será critica e intelectualmente responsável acerca da aquisição de crenças verdadeiras, e colocará este compromisso com a virtude moral acima de todas os outros interesses, especialmente aqueles que podem corromper ou comprometer a bondade moral, como a fé ou a lealdade. Assim, aqueles que são genuinamente merecedores do céu muito provavelmente se tornarão não-teístas, uma vez que sua investigação será responsável e portanto completa, e colocará suas preocupações morais acima de todas as outras. Eles então se defrontarão com os fatos inegáveis relativos a todos estes males inexplicados (na Bíblia e no mundo) e concluir que Deus deve provavelmente ser maligno ou inexistente.

Em outras palavras, aceitar tais males sem que uma justificativa seja dada (como o silêncio de Deus implica) indica um compromisso insuficiente com a aquisição de crenças verdadeiras. Mas demonstrar a coragem de manter a descrença face a ameaças de punição eterna no inferno ou de destruição definitiva e absoluta, bem como de inúmeras formas de pressão social e outros fatores adversos, é exatamente o comportamento que um deus esperaria dos genuinamente bons, em vez da submissão à vontade de um ser maligno, ou uma confiança ingênua e injustificada na bondade de um ser aparentemente maligno — esses não são comportamentos esperados de pessoas genuinamente boas.

Por conseguinte somente os não-teístas intelectualmente comprometidos mas críticos são genuinamente virtuosos e irão para o céu. Portanto, se Deus existe, seu silêncio e tolerância para com o mal ( no mundo e na Bíblia) são explicados e justificados por seu plano de descobrir as únicas classes de pessoas que merecem habitar o céu: não-teístas sinceros. E isto torna perfeitamente compreensíveis vários mistérios, explicando, assim, o que os teístas lutam e se debatem e se contorcem e se atormentam para explicar para si próprios.

  • O ocultamento divino é necessário nesta explicação, uma vez que sua presença inspiraria as pessoas a se comportarem moralmente por medo ou motivadas por interesses egoístas, não por coragem ou compaixão ou um senso de integridade pessoal.
  • Uma imagem falsa e malévola de Deus na Bíblia é necessária a fim de testar se o leitor colocará a moralidade ou a fé no topo de sua escala de valores, constituindo-se num teste para a coragem moral frente a afirmações, ameaças e promessas de recompensa. Também testa a confiabilidade cognitiva, já que é errado confiar mais na mera palavra escrita de alguém do que em verdades cientificamente estabelecidas e na evidência direta da razão e dos sentidos.
  • Males naturais e maldades humanas não impedidas também são necessários nessa explicação, uma vez que apenas desta maneira pode um Deus “demonstrar” que não existe nenhuma força moral por trás do universo, que não há nenhum zelador, e por este meio induzir observador racional e comprometido a concluir que não existe nenhuma divindade. Se o universo fosse bem-ordenado, com constrangimentos morais inerentes e a contenção ou restrição de males, os obervadores poderiam concluir que há um Deus; assim, mais uma vez, poderiam agir corretamente por medo ou pela esperança de recompensa.
A única maneira de verdadeiramente testar os seres humanos é observar se eles se tornarão não-teístas após sérias e sinceras investigações a respeito destes temas: verificar se temos a coragem e a força moral para escolher a moralidade acima da fé ou da lealdade, e de sermos bons sem medo ou esperança de retribuição divina. Nenhum outro teste garantirá um resultado com os genuinamente bons sendo auto-selecionados num previsível estado de crença que pode ser observado secretamente por Deus.

Conclusão

Como isto explica com facilidade e abraangência todos os inexplicáveis problemas com Deus (como o ocultamento divino e a aparente falta de sentido de alguns males), ao passo que outras teologias não o fazem ( ou no mínimo não tão bem), segue-se que esta análise é provavelmente uma interpretação melhor de toda a evidência disponível do que qualquer teologia em contrário. Uma vez que esta conclusão contradiz a conclusão de todas as formulações da Aposta de Pascal, segue-se que a Aposta de Pascal não pode convencer ninguém da existência de Deus ou de que a crença em Deus é a melhor aposta.

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