Autor: Bruno Sunkey

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O objetivo deste texto consiste em apresentar uma crítica à teologia calvinista, em especial a pontos implicados por sua soteriologia. Pretende-se considerar algumas objeções filosóficas e teológicas que entendo estar entre as maiores dificuldades que o Calvinismo enfrenta como proposta teológica. Alguns pontos, no entanto, precisam ser considerados antes de tudo. Em primeiro lugar, o Calvinismo não é sinônimo de soteriologia, sendo, ao invés disso, uma teologia ampla e, para alguns, até mesmo uma cosmovisão abrangente. Assim, embora este texto considere especialmente aspectos soteriológicos do pensamento calvinista, estou ciente de que o Calvinismo não se reduz a isso.

Em segundo lugar, não existe um só tipo de Calvinismo, a chamada Teologia Reformada possui várias vertentes, como a Teologia do Pacto, o neocalvinismo holandês, o supralapsarianismo, o infralapsarianismo, o Calvinismo de Westminster, o calvinismo pressuposicionalista, o calvinismo escolástico, o calvinismo determinista, o calvinismo compatibilista e muitas outras correntes. Desse modo, não necessariamente as objeções consideradas aqui se aplicam a todas as formas de Calvinismo, embora eu acredite que se aplicará ao menos as formas mais comuns de Calvinismo.

Antes, no entanto, de considerar objeções ao Calvinismo, é necessário que eu apresente a própria teologia calvinista que será considerada aqui. Assim, poderemos evitar críticas fracas que foram levantadas contra essa teologia devido a uma incompreensão de suas concepções. Ademais, para entender as objeções que trarei é preciso ter uma boa compreensão das noções dessa proposta teológica. Este texto será composto das seguintes partes: (i) os cinco pontos do Calvinismo; (ii) ordem dos decretos e Teologia do Pacto; (iii) objeções ao calvinismo.

I. OS CINCO PONTOS DO CALVINISMO

João Calvino, reformador e pai do Calvinismo, não necessariamente sistematizou a soteriologia calvinista. Por exemplo, não é claro, pelas Institutas, se o autor entendia a expiação como limitada; ele também não falava da regeneração como um processo que precede a conversão, entre outros pontos. No entanto, depois que a soteriologia calvinista foi mais bem sistematizada no Sínodo de Dort, alguns pontos passaram a ser consenso pelo menos entre a maioria dos calvinistas em matéria de soteriologia. Esses pontos são cinco e são geralmente representados pela sigla TULIP, dada a inicial das palavras em inglês (Total Depravity, Unconditional Election, Limited Atonement, Irresistible Grace, Perseverance of the Saints). Consideremos, pois, o significado de cada um desses termos:


1.1 Depravação Total: De acordo com a doutrina da depravação total ou radical, o ser humano se tornou corrompido de tal forma, que é impossível que ele se achegue a Deus por forças próprias, suas pretensas boas obras são assim sem valor diante de Deus, o homem é de tal modo corrompido que se não for pela regeneração divina, ele jamais fará algo bom de fato, no sentido do bem espiritual. Importante considerar que essa doutrina não significa afirmar que o ser humano não possa ter atitudes boas diante de outros homens, ou que todos os homens são maximamente maus, mas que esses homens estão corrompidos em todas as esferas de seu ser e ações, e que somente debaixo de uma graça de Deus esses homens podem ser bons, em Deus, de alguma forma. O homem nasce nesse estado de depravação, seu livre-arbítrio está incapacitado de escolher o bem espiritual ou se voltar para Deus e sem intervenção divina, o ser humano é incorrigível. Ele é, nesse estado, incapaz de cumprir seus deveres diante da Lei de Deus e mesmo suas supostas obras de justiça estão corrompidas pelo pecado.

1.2 Eleição Incondicional: Essa doutrina significa que Deus elege quem Ele vai salvar incondicionalmente, independentemente de qualquer coisa prevista quer por presciência, quer por conhecimento médio. Pode parecer que essa doutrina de que Deus predestina alguns para salvação seja o elemento mais específico e próprio do calvinismo. Na verdade, a doutrina de que é a eleição divina e não a escolha humana que no final diferencia salvos de condenados é a doutrina que remonta a toda tradição agostiniana, passando por pensadores como Tomás de Aquino e Lutero. É evidente para tradição agostiniana que a resposta do ponto definidor que faz uma pessoa ser salva não pode ser algo que dê mérito ao humano. Assim, para a pergunta: "No final das contas, o que diferencia quem vai para o Céu e quem vai para o inferno?” Os agostinianos sempre responderam que é a eleição e predestinação divinas. Isso não significa que todos eles compraram todo o pacote de ideias que o Calvinismo compra. Alguns encontraram formas de pensar como a predestinação divina pode concorrer com o livre-arbítrio humano ou mesmo relegaram essa relação como um mistério de fé. Portanto, vale a pena dizer que a doutrina da predestinação não é exatamente uma doutrina propriamente calvinista.

1.3 Expiação Limitada: A Expiação limitada, também chamada de Expiação definida, é a doutrina segundo a qual o sacrifício de Jesus é eficiente somente nos eleitos, embora possa ser suficiente para todas as pessoas do mundo. Nesse ensino, Jesus morreu somente pelos eleitos e não por todas as pessoas do mundo. Vale considerar algumas questões. A noção de expiação defendida pelos calvinistas depende de uma teoria controversa em teologia chamada de Teoria da Substituição Penal. Segundo essa teoria, Jesus morreu para pagar a dívida dos pecados no lugar dos pecadores. Assim, os pecadores que mereciam ser punidos no inferno não precisam mais ser punidos porque Jesus morreu por eles. Como os únicos pecadores que não serão punidos, segundo o calvinismo, serão os eleitos, Jesus morreu somente pelos eleitos. A segunda questão é diferenciar o escopo da expiação de sua suficiência. O sacrifício de Jesus é suficiente para expiar o pecado não só de todas as pessoas, mas de infinitas pessoas. O motivo pelo qual Deus não aplica a expiação a todos não é porque ela não é suficiente, é porque ele não quer.

1.4 Graça Irresistível: Trata-se da graça regeneradora e salvífica que não pode ser resistida. Para entender isso, é importante clarificar algumas coisas. O fato de a graça ser irresistível não quer dizer que o eleito não possa resistir à graça por um tempo nem significa que essa graça viola a vontade ou livre agência humana. Em geral, alguns calvinistas distinguem “regeneração” de “conversão”. O coração não-regenerado é o coração depravado que sempre rejeita a Deus. No entanto, em algum momento Deus transforma esse coração, esse processo é subconsciente e acontece por ação monergista (exclusiva) de Deus. Isto é, não há qualquer cooperação humana na regeneração. O coração regenerado, por sua vez, não pode mais resistir ao chamado de Deus. Aqui não se trata de ele não resistir porque a graça viola sua liberdade, embora alguns calvinistas preferem falar dessa liberdade apenas em sentido fenomenológico enquanto outros a concebem como uma livre agência real. O motivo da irresistibilidade da graça é que ela é tudo que o coração regenerado livremente deseja. O coração corrompido pode ser comparado a uma pessoa cega e a regeneração com curar a cegueira. Suponhamos, continuando na metáfora, que essa pessoa que antes era cega está em um deserto no sol quente e desesperadamente com sede. Ao ter sua cegueira curada, essa pessoa vê um copo de água à sua frente. A graça é irresistível no mesmo sentido em que esse copo de água é irresistível para essa pessoa sedenta. O eleito regenerado, ao receber a oferta do Evangelho, se converterá porque o Evangelho é tudo que ele necessita e deseja. A conversão pode envolver cooperação humana para alguns calvinistas, já que agora o humano transformado é capaz de responder livremente a Deus. Essa conversão envolve fé e arrependimento e a entrada em um processo gradual de mudança de vida chamado de santificação.

1.5 Perseverança dos Santos: A perseverança dos santos é a doutrina que ensina que Deus guarda seus eleitos de se perderem. Isso não significa que as pessoas possam viver no pecado e ainda assim serão salvas. A perseverança dos santos envolve um processo gradual de mudança de vida. O ponto é que uma vez iniciado esse processo, ele não poderá ser inteiramente interrompido. A santificação terminará apenas na glorificação, quando a pessoa estará completamente transformada e alcançará a perfeição. No entanto, pessoas santas, para o calvinismo, podem ainda assim experimentar quedas em pecados gravíssimos ou até mesmo abandonarem a fé por um tempo. No entanto, aquele que foi realmente regenerado, um dia encontrará o caminho do arrependimento e da reconciliação. Aqueles, por sua vez, que se apostatam da fé e nunca mais retornam, revelam nunca terem sido realmente salvos de fato.

Acredito que a maneira como apresentei os pontos acima já refuta algumas críticas fracas ao Calvinismo, geralmente resultadas de uma compreensão inadequada dessa teologia. Não faz sentido argumentar que o Calvinismo ensina uma graça irresistível forçada; que ele ignora a importância de viver uma vida de santidade entre outras. Uma crítica comum ainda é que o Calvinismo supostamente ensinaria que o evangelismo é desnecessário. Essa crítica ruim não leva em conta que Deus deseja salvar os eleitos por meio do evangelho. O Calvinismo não é fatalista, ele não ensina que os planos de Deus vão se cumprir não importa o que aconteça. Antes, significa que os planos de Deus vão se cumprir pelos meios determinados por Deus. O Calvinismo também distingue vocação geral, que é o dever de convidar todo ser humano ao arrependimento, de vocação especial, que é o chamado ao arrependimento que o Espírito Santo faz no coração do ser humano eleito. Tudo isso é importante de ser dito para que não façamos espantalhos da teologia calvinista ao fazer críticas a ela.

II.ORDEM DOS DECRETOS E TEOLOGIA DO PACTO

O Calvinismo hoje lida com uma discussão que envolve dois temas, o debate entre supralapsarianismo e infralapsarianismo; e o chamado Aliancismo ou Teologia do Pacto. Por vezes, alguns tratam essas discussões como secundárias, no entanto elas são fundamentais. Mostrarei nesta seção que a Teologia do Pacto em combinação com o Supralapsarinismo resulta em uma forma muito específica de Calvinismo que tem importantes implicações teológicas inclusive para além da soteriologia.

A discussão sobre supralapsarianismo e infralapsarianismo é um debate sobre a ordem dos decretos divinos. Praticamente todo calvinista concorda que a ordem dos eventos é infralapsariana. Existem três eventos especiais na teologia reformada: Criação - Queda - Redenção. Todos concordam no geral que na ordem dos eventos no mundo a Redenção vem depois da Queda. Infralapsarianismo é a posição de que a Queda precede a Redenção. No entanto, embora seja consenso que a ordem dos eventos seja infralapsariana, há discordância sobre se a ordem dos decretos divinos é essa também.

É importante dizer que a teologia geralmente concorda que Deus decretou todos os eventos que se tem lugar no mundo de uma só vez. Deus também não pensa de maneira encadeada, ele não realiza raciocínios. No entanto, quando perguntamos “em razão de que Deus determinou ou decretou um evento?”, podemos fazer uma relação lógica entre os decretos divinos. São três os decretos divinos: Decreto da Criação; Decreto da Queda e Decreto da Redenção. Quando se pergunta: “Em razão de que Deus decretou a Redenção?” O infralapsariano responde: “Em razão do Decreto da Queda”. De modo simples, Deus determinou salvar pessoas porque ele sabia que elas iriam pecar.

Alguns calvinistas consideram o Decreto da Queda como um decreto permissivo. Deus permitiu que o ser humano caísse em pecado e por saber que isso iria acontecer ele decidiu salvar entre a humanidade pecadora os seus eleitos, deixando com que o resto dos humanos caminhasse livremente para a perdição. A maior parte dos calvinistas, assim, não concorda com uma dupla predestinação. A humanidade não-eleita caminha em direção à condenação por sua própria vontade livre, sendo apenas abandonados por Deus em seus pecados. São os eleitos que precisam ser predestinados e precisam de uma ação divina que garanta que eles não se perderão.

Os supralapsarianos, por sua vez, possuem uma concepção distinta. Alguns deles até concordam em rejeitar a dupla predestinação, mas discordam sobre a ordem dos decretos. Para o supralapsariano, o decreto da Redenção vem antes do decreto da Queda. Enquanto o infralapsariano entende que Deus salva pessoas porque sabia que elas iriam pecar, para o supralapsariano as pessoas caíram no pecado porque Deus deseja salvar algumas delas. Assim, Deus tinha o plano original de salvar algumas pessoas (Decreto da Redenção). No entanto, para salvar pessoas era preciso que elas pecassem então Deus decretou a Queda, no entanto, para que pessoas pecassem era preciso que elas fossem criadas, Deus então decretou a Criação.

Pode parecer que isso é uma discussão secundária. Mas veremos que não é quando combinarmos o Supralapsarianismo com a Teologia do Pacto. Nem todo teólogo do pacto é supralapsariano, a maioria é infralapsariano. Contudo, a teologia pactual combina melhor com o supralapsarianismo. Segundo a Teologia do Pacto, Deus Pai fez uma Aliança com Deus Filho na Eternidade, chamado “Pacto da Redenção”. Neste Pacto, Cristo é o Representante dos eleitos. O “Pacto da Redenção” é aquele no qual Cristo, como representante de um povo eleito, assume o compromisso de realizar a obra da expiação e recebe como promessa esse povo.

Deus também fez, segundo essa visão, um Pacto com Adão, chamado “Pacto de obras”, no qual a vida foi prometida à humanidade sob a condição de perfeita obediência. Se esse pacto, no entanto, fosse transgredido, a punição seria a morte eterna. Depois que Adão, representando a humanidade, transgrediu a Lei, todos aqueles nele representados ficaram encerrados sob condenação eterna.

Deus, no entanto, fez um Pacto de Graça com o homem através do qual os benefícios da redenção são comunicados à humanidade representada em Cristo. Assim como a morte veio sobre todos os que estão representados em Adão no Pacto das Obras, a vida eterna agora vem sobre todos aqueles que estão representados em Cristo no Pacto da Redenção, isto é, os eleitos com quem Deus estabeleceu uma Aliança de Graça. O Pacto da Graça é único, mas possui duas grandes economias, designadas como “Antigo Testamento” e “Novo Testamento” ou “Antiga Aliança” e “Nova Aliança”. Trata-se, no entanto, da mesma Aliança em duas dispensações. A Nova Aliança é a continuação da Antiga, sendo apenas sua renovação.

Se a Redenção é um Pacto entre Deus Pai e Deus Filho na Eternidade, fica claro como isso se relaciona com o Decreto da Redenção no Supralsapsarianismo. A razão da Redenção não é que a humanidade caiu em pecado, é que Deus Pai fez uma promessa ao Filho de lhe dar um povo redimido. Os termos do Pacto são o seguinte: Deus tem o propósito de manifestar ou glorificar eternamente dois de seus atributos: o amor e a justiça. Para tanto ele deseja que haja eternamente dois grupos de pessoas: pessoas que receberão seu amor gracioso eternamente e pessoas que receberão sua justiça retributiva eternamente. Assim, Deus pode glorificar atributos da Divindade na figura de um Salvador gracioso que ama e perdoa o mais terrível pecador, mas também sua figura de Juiz Severo que pune devidamente o pecador.

Esse é o propósito do Pacto, criar um mundo em que a Divindade seja glorificada em Seu Amor Gracioso e em sua Justiça Severa por toda eternidade. Assim, Deus faz uma aliança com Seu Filho de dar a ele este mundo. E nesta aliança o Filho assume o papel de ser o representante federal do grupo que será salvo. O Filho é Eleito para representar esse grupo e é consequência disso que esse grupo é chamado de "eleitos". O grupo que será o que vai ser punido severamente é chamado de "réprobos".

Assim é fácil de entender a ordem dos decretos no supralapsarianismo combinado com a teologia do Pacto:

1. Decreto da Redenção: Deus decide criar dois grupos de pessoas uma para manifestar seu amor que perdoa o pecador e assim glorificar seu amor gracioso; outro para punir o pecador e assim glorificar sua justiça retributiva eternamente.

2. Decreto da Queda: Para que haja esses dois grupos, é preciso que haja pecadores, então as pessoas precisam pecar.

3. Decreto da Criação: para que haja pessoas que pequem, Deus precisa criá-las.

Essa teologia parece evidentemente ferir nossas melhores intuições morais. Parece tornar Deus sádico ou egoísta. Essas críticas baseadas em nossas intuições morais possuem uma certa validade, mas não são suficientes se queremos fazer uma boa crítica à teologia calvinista. Precisamos ir além de dizer que a teologia calvinista é contraintuitiva, precisamos apresentar razões mais fortes do motivo pelo qual ela está errada. No entanto, eu citei um termo nessa seção que ainda não esclareci, que é o termo “representante federal”. Será importante considerar o que essa concepção significa.

Muitos calvinistas adotam uma concepção federalista de representatividade. Combinada com a Teologia do Pacto, alguns dizem que Adão é o representante federal de toda humanidade no Pacto de Obras e que Jesus é o Representante Federal de toda humanidade no Pacto de Redenção. É importante dizer que o calvinista aliancista também entende que o Pacto de Obras continua vigente ainda hoje e que toda humanidade será condenada como culpada nele e que Cristo cumpriu as exigências desse Pacto no lugar dos eleitos, tanto por pagar a dívida dos eleitos quanto a esse pacto quanto por oferecer sua justiça perfeita como aquilo que é aceito para que os eleitos recebam a recompensa da vida eterna.

Todas essas noções dependem de algo que é o federalismo. O federalismo é a doutrina segundo a qual aquilo que um representante federal de um grupo faz em condição de representante desse grupo deve ser imputado a todo o grupo. O federalismo tem uma estranha implicação. Se Adão pecou em condição de representante de toda humanidade, então a culpa do seu pecado deve ser atribuída ou imputada a todos os humanos. Isso significa que mesmo um bebê antes de saber falar já tem uma dívida, ele é culpado do pecado e por isso merece a condenação eterna. Essa estranha doutrina contradiz todo o modo como a teologia cristã historicamente compreendeu o pecado original.

De acordo com a teologia cristã histórica, a natureza corrompida de Adão foi transmitida a todos os seus descendentes. Todos nascem contaminados pelo pecado e ninguém pode entrar no céu nessa condição corrompida pelo pecado. Essa natureza envolve um corpo enfermo e mortal, e uma propensão da alma para o pecado. Contudo, embora o fato de alguém ter uma natureza corrompida tornar ela imprópria para entrar no céu, não torna ela digna do inferno. Um bebê, por exemplo, tem uma natureza corrompida, mas não é culpado de ter essa natureza. Ele só passará a ter culpa, quando ele realmente cometer um pecado em ato como fruto dessa natureza.

Já para a teoria federalista, herdamos de Adão uma natureza corrompida pelo pecado por transmissão. No entanto, além dessa transmissão, todo ser humano também é culpado do pecado de Adão. Isso ocorre porque Adão era representante federal de toda humanidade. Isso significa que: "uma pessoa é representante federal de um grupo quando a responsabilidade e a culpa de tudo que esse representante faz na condição de representante deve ser imputada a todo o grupo". Assim, a culpa do pecado de Adão foi imputada a toda humanidade. Enquanto a natureza corrompida foi transmitida a todos os humanos, a culpa (punição) do pecado de Adão foi imputada a todos os humanos. Logo, um bebê mesmo antes de pecar, é culpado do pecado de Adão e merece a condenação eterna.

III. OBJEÇÕES AO CALVINISMO

Decidi usar a maior parte do texto para apresentar a teologia calvinista do modo mais fiel possível e de forma clara. As objeções ocuparão menos espaço, mas elas dependem de uma boa compreensão da teologia calvinista, o que justifica o fato dessa apresentação ter ocupado a maior parte do texto. Evitamos, assim, aquelas críticas ruins baseadas em espantalho já mencionadas. Vejamos, pois, objeções fortes contra a teologia calvinista:


OBJEÇÃO (1): O Calvinismo se baseia em uma interpretação incorreta da Bíblia:

Os calvinistas geralmente dizem se basear especialmente em textos paulinos sobre eleição, justificação, graça e predestinação. Entretanto, os estudos mais atualizados sobre Paulo têm mostrado que a interpretação do autor como propondo uma soteriologia sobre a salvação de indivíduos está equivocada. Muito se lê Paulo à luz de controversas entre Agostinho e Pelágio, Lutero e a Igreja Católica ou entre calvinistas e arminianianos, quando na realidade o que Paulo estava realmente preocupado era com a discussão sobre se gentios também seriam justificados.

Paulo escrevendo na década de 50d.C. quando não-judeus (gentios) se convertiam ao movimento de Jesus teve de lidar com se esses gentio precisavam obedecer à lei judaica para serem seguidores de Cristo. O que Paulo defendeu é que os gentios seriam justificados sem a necessidade de guardar a lei judaica (circuncisão, sábados, kosher etc.). Não se tratava, pois, de qualquer obra ou mérito em qualquer sentido.

Além disso, Paulo quis mostrar que cristãos gentios também eram eleitos porque agora passavam a fazer parte do povo eleito de Deus: os judeus ou o Israel espiritual. Ser do povo eleito não era mais uma questão de sangue, mas de fé. Assim, Paulo não estava ensinando a doutrina calvinista da eleição e graça, mas discutindo a condição dos gentios diante das exigências da Lei judaica. É importante também dizer que a Teoria da Substituição Penal nem a compreensão federalista do pecado original são ensinadas com clareza na Bíblia. Essa objeção, entretanto, pode não ser conclusiva, porque a Bíblia admite ser acomodada em diferentes interpretações.

É sempre importante lembrar que nossas pré-concepções teológicas influenciam fortemente nossa exegese da Bíblia. Um calvinista ao ler a Bíblia facilmente enxergará suas próprias ideias nos textos. Talvez seja chocante para ele saber que a Bíblia não ensina nada sobre os conceitos teológicos que ele tanto aprecia e seja para ele difícil perceber que o que ele vê na Bíblia é uma projeção de suas próprias ideias. Essa objeção tem, no entanto, um efeito inconclusivo, já que uma pessoa pode escolher ler a Bíblia de forma calvinista. Assim como um católico lê a Bíblia à luz do Magistério da Igreja, muitos calvinistas, por exemplo, leem a Bíblia à luz da Confissão de Westminster. Mas desde que os autores dessa Confissão não eram infalíveis, o que garante que sua leitura não está equivocada? E se um calvinista diz que sua exegese prova que o calvinismo está certo, o que garante que ele não está apenas projetando no texto suas concepções?

Também não queremos ser relativistas e dizer que a Bíblia pode ser livremente interpretada. Certamente há formas corretas e incorretas de interpretar os textos bíblicos. Por exemplo, além da teologia agostiniana, hoje temos pessoas que leem Paulo a partir da chamada Nova Perspectiva de Paulo que tem fornecido ferramentas para outras interpretações do texto paulino. Ademais, a academia secular também tem produzido pesquisas para compreender as cartas paulinas autênticas. É importante se beneficiar desses novos estudos que podem lançar luz para podermos reler textos bíblicos sobre graça, eleição, predestinação e salvação com outras lentes.

OBJEÇÃO (2): O Calvinismo se baseia na ideia equivocada de que dever moral não implica poder:

É um princípio tomado por muitos até mesmo como autoevidente que obrigação moral implica capacidade moral. Ninguém pode ser considerado culpado de falhar por um dever que não pode fazer. O Calvinismo supõe que todos os seres humanos são culpados diante de Deus por não obedecerem perfeitamente a Lei. Por outro lado, os calvinistas também sustentam que ninguém pode obedecer perfeitamente a Lei por causa da depravação radical. Assim, o Calvinismo fere o princípio óbvio de que ninguém pode ser considerado culpado por aquilo que não está ao seu alcance fazer.

Aqui é importante esclarecer um ponto. É possível que alguém tenha certa responsabilidade por uma ação mesmo que não pudesse ter feito o contrário. A pessoa pode ter agido voluntariamente, mesmo estando impedida de fazer o oposto. Pense o exemplo de um torturador de crianças chamado Pedro. Suponha que para evitar que Pedro pratique tortura infantil, alguém implantou em seu cérebro um chip que será ativado sempre que Pedro decidir torturar uma criança. Caso Pedro não faça isso, o chip não fará nada. Suponha, no entanto, que Pedro mesmo sem saber desse chip, já havia se arrependido de suas ações e mudado. Ele nunca mais irá torturar uma criança. Parece que possamos entender que Pedro decidiu mudar voluntariamente e merece elogios por isso, mesmo que seja verdade que na prática ele não pudesse agir contrariamente ao modo como age, já que o chip seria ativado impedindo que ele torturasse uma criança.

Contudo, embora isso seja o caso com a ação voluntária, não parece ser o caso se quisermos falar de “dever moral”. Considere novamente Pedro. Pedro torturou uma criança por diversão. Mas suponhamos que Pedro não tivesse a capacidade ou poder de não fazer isso. Faz sentido dizer a Pedro: “Você não deveria ter torturado a criança?” Perceba que pela própria análise do conceito de dever, a resposta é que não faz sentido. Dizer a alguém “Pedro não deveria ter feito X” é dizer “Pedro deveria ter deixado de fazer X” e isso implica que “Pedro poderia ter deixado de fazer X”. Se eu digo que alguém deve fazer X, está implícito que eu suponho que essa pessoa pode fazer X. Não há qualquer sentido em dizer que alguém deve fazer aquilo que não pode fazer.

O ser humano pós-lapsariano (após a Queda) não pode mais obedecer perfeitamente a Lei de Deus, logo, isso implica pelo princípio “dever implica poder” que o ser humano pós-lapsariano não tem mais o dever de obedecer perfeitamente a Lei de Deus e não pode ser condenado por não cumprir com esse dever. Mas o calvinismo insiste que o ser humano pós-lapsariano deve obedecer a Deus ao mesmo tempo em que é incapaz de fazê-lo. Poder-se-ia argumentar que o homem pós-lapsariano pode obedecer perfeitamente a Lei de Deus com o auxílio da graça salvífica. O problema é que essa graça se dirige apenas aos eleitos, quando muito os ímpios contam apenas com a graça comum para alguns calvinistas, graça que não pode fazê-los habilitados ao bem espiritual.



OBJEÇÃO (3): O Calvinismo apresenta um Deus injusto.

De acordo com calvinistas, Deus escolheu salvar uns e condenar outros com base inteiramente em Sua vontade sem considerar nenhuma propriedade dos indivíduos. No entanto, isso significa que Deus dá um tratamento desigual a dois grupos de pessoas sem justificativa alguma nelas mesmas. Embora possa se argumentar que Deus poderia condenar todos com justiça, a partir do momento que Deus escolhe salvar uns e não outros, ele cria uma distinção arbitrária entre pessoas na qual algumas são beneficiadas e outras não sem uma razão nelas que justifique esse tratamento diferenciado. Assim, a eleição incondicional calvinista fere o princípio da equidade.

Neste ponto, não quero recorrer apenas a uma intuição de que o Deus calvinista seja sádico, egoísta ou injusto. Calvinistas entendem que mesmo que Deus condenasse a todos os humanos sem distinção ao inferno ainda assim Deus estaria sendo justo. Assumamos que isso é verdade, que a condenação eterna de toda humanidade seja justa. Isso pode ter o efeito contraintuitivo de pensar que Deus criou um mundo aonde todos irão para o inferno. Mas queremos ir além dessa intuição.

Mesmo que seja justo a Deus mandar todos ao inferno, será que é justo Deus escolher salvar uns e condenar outros? Suponhamos que eu seja uma pessoa caridosa, suponhamos ainda que eu tenho dinheiro sobrando para fazer caridade suficiente para ajudar todas as pessoas passando fome no mundo. No entanto, eu decidi por preferência própria fazer caridade só com uma parte delas. Eu selecionei apenas algumas pessoas para tirá-las da fome e decidi deixar as demais morrerem de fome. Não é por me faltar dinheiro, é simplesmente que eu não quero ajudar todo mundo. Eu quero mesmo que algumas pessoas morram mesmo de fome. Será que essa acepção de pessoas pode ser considerada justa? Merece minha caridade ainda louvor enquanto eu benefício alguns e excluo outros?

Consideremos o seguinte princípio de equidade: “em situações em que é possível oferecer um tratamento igualitário justo a um grupo de pessoas, fazer distinções nesse tratamento de forma arbitrária é errado”. O princípio da equidade envolve tratar de modo desigual os desiguais quando as diferenças entre as psssoas justifica um tratamento diferenciado. Mas, qual a razão pela qual Deus salva alguns e condena outros? Que critério justifica esse tratamento desigual? O calvinista insiste que não há nada nessas pessoas que justifique esse tratamento desigual. Talvez o calvinista tente fugir disso dizendo que o critério só é conhecido por Deus e que ele não é arbitrário. No entanto, o calvinista tem de insistir que não há nenhuma característica nas pessoas mesmas que justifique essa desigualdade no tratamento e se esse é o caso é apenas um jogo de palavras dizer que não há arbitrariedade. Deus escolhe diferenciar pessoas com um tratamento desigual simplesmente com base no seu próprio arbítrio ou no beneplácito de sua Vontade. Isso fere, no entanto, o princípio de equidade e revelaria uma injustiça da parte de Deus.



OBJEÇÃO (4): O federalismo fere o princípio de que a culpa não pode ser atribuída por mera imputação:

De acordo com calvinistas, todos os seres humanos foram considerados culpados e condenados diante de Deus por causa do pecado de Adão. Adão é tomado como representante federal da humanidade devido ao pacto de obras. Consequentemente, o calvinista raciocina que, por causa dessa representação, a culpa de Adão é automaticamente transferida a todos os homens. Mas parece um princípio autoevidente que ninguém pode ser culpado por mera imputação. Fere nossas melhores concepções morais que uma pessoa deva ser punida pelo erro de outra sem ter contribuído para esse erro.

Há casos em que uma pessoa pode ser culpada, pelo menos parcialmente, pelo que faz seu representante. Eu sou responsável por aquilo que um presidente que eu elegi com meu próprio voto faz. Uma empresa pode receber a culpa pelo que um representante seu faz na condição de representante. Mas em todos esses casos, as pessoas culpadas participam de algum modo nessa culpa. Eu escolhi o presidente do meu país e contribuí para ele estar lá com meu voto. O patrão de uma empresa pode ter contratado alguém para representar ele nos negócios. Mas eu não escolhi ter Adão por representante nem participei nas suas escolhas desastrosas. Talvez alguém diga que eu participei sim por cometer pecados também. Mas o que o calvinista ensina é que eu mesmo quando era um bebê antes de cometer qualquer pecado já era culpado do pecado de Adão. Ou que um bebê que morre antes de completar um mês já é um ser culpado e debaixo da ira divina. Ainda que, para alguns calvinistas, por um ato de graça Deus possa salvar todos os bebês, permanece o fato de que a culpa da condenação eterna já é imputada a ele. Outros dizem que se qualquer um de nós estivesse no lugar de Adão teria caído em pecado, mas o fato é que ninguém pode ser considerado culpado por um contrafactual que não se realizou.

Nesses assuntos, talvez um calvinista pressuposicionalista diga que devemos lembrar que nossos “pressupostos” estão errados. Que é Deus ou a Bíblia que define o que é certo, errado ou culpa. Mas isso fere qualquer concepção metafísica coerente, porque Deus ou a Bíblia não podem arbitrariamente definir conceitos fundamentais sem critério algum. Tanto a crítica ao federalismo como a crítica do dever implicar poder, talvez mesmo da noção de equidade, foram feitas inteiramente com base em uma análise lógica dos conceitos. Faz parte do conceito de culpa que uma pessoa só pode ser culpada por algo que ela fez ou em cuja ação participou voluntariamente. Faz parte do conceito de equidade não oferecer um tratamento desigual sem justificativa. Do mesmo modo, faz parte do conceito de dever que uma pessoa só pode ter o dever de fazer aquilo que está ao seu alcance fazer. Recorrer, portanto, a uma crítica pressuposicionalista não é capaz de salvar o calvinismo das objeções levantadas aqui.

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