Autor: Gavin Hyman
Tradução: Desiderio Murcho, no livro Um mundo sem Deus: Ensaios sobre o ateísmo (pp. 27 à 42)

Índice:
Ateísmo na antiguidadeParte 01Parte 02
Ateísmo na história modernaParte 01, Parte 02


3. O Deus que o ateísmo moderno rejeita
Parece um truísmo afirmar que o ateísmo moderno rejeitou um Deus moderno. Mas tal afirmação é consideravelmente significativa caso se possa mostrar que uma concepção especificamente moderna de Deus era peculiar e que assinalava um afastamento do que até então tinha sido prevalecente. Muitas pessoas afirmaram que isto foi realmente assim, sendo o Deus moderno uma “coisa” muito diferente do pré-moderno. Na verdade, dizer que o Deus moderno era uma “coisa” capta de vários modos a distinção; para a teologia pré-moderna, Deus não era de modo algum uma “coisa.” A transição compreende-se talvez melhor em termos de uma transição correspondente no uso da linguagem.

Mencionamos já brevemente a grande ênfase de Tomás na transcendência de Deus. Quando as criaturas falam de Deus, pensava-se, há uma tentação constante de “domesticar” a transcendência de Deus, de transformar Deus mais numa criatura do que no criador. Os escritos de Tomás podem ser entendidos, em grande parte, como uma tentativa constante de evitar esta tentação sempre presente e de preservar a característica mais essencial de Deus: a sua transcendência. Assim, como vimos, Tomás sublinhava os limites da racionalidade humana com respeito a Deus e um certo agnosticismo com respeito ao nosso conhecimento de Deus. Mas outra arma crucial para a batalha de Tomás em defesa da cidadela da transcendência divina era a sua doutrina da analogia. Apesar de serem bem conhecidos os ensinamentos de Tomás sobre a linguagem analógica, nem sempre se valorizou a sua centralidade e ubiquidade com respeito aos seus restantes ensinamentos.

Para Tomás, o problema fundamental da linguagem é ter sido desenvolvida por criaturas para referir coisas criaturais. É consequentemente desadequada — e potencialmente enganadora — quando aplicada a Deus. Para evitar a conclusão de que nada absolutamente se pode dizer sobre Deus, temos de reconhecer pelo menos que a nossa linguagem só pode aplicar-se a Deus de um modo muitíssimo limitado e provisório. Não podemos imaginar que a nossa linguagem se refere a Deus do mesmo modo que se refere a coisas no mundo. Esta convicção está no coração dos ensinamentos de Tomás sobre a analogia. Tomás afirmou que sempre que usamos uma palavra de Deus, fazemo-lo de um modo que se relaciona com o modo como a usamos com respeito a coisas finitas, mas quanto à natureza precisa dessa relação e quanto ao que a palavra efetivamente significa quando a aplicamos a Deus, temos de permanecer em silêncio. Usar a linguagem deste modo, estando constantemente ciente desta “relação-na-diferença,” é usar a linguagem analogicamente. Permite à criatura falar e saber algo sobre Deus, mas este “algo” é sempre mitigado por um certo agnosticismo ou desconhecimento. E para Tomás toda a linguagem predicada de Deus é analógica; não há como fugir deste uso linguístico sem comprometer a transcendência de Deus. Como de Certeau escreve, “O peso da transcendência [de Deus] torna toda a proposição relativa, chegando-se até ao ponto de ter de se fazer seguir a afirmação “Deus existe” por uma negação.”

Na modernidade, esta compreensão da analogia acabou por se perder. Isto não significa que tenha desaparecido completamente, mas tornou-se marginal em vez de central. Mesmo nos casos em que continuou a ser invocado como doutrina, era consideravelmente menos equívoca do que a sua predecessora tomista. A insistência de Tomás de que toda a linguagem de Deus era analógica acabou por ser esquecida, pensando-se agora que Deus partilhava com a criação pelo menos alguns predicados genuínos, literal e univocamente. Esta posição foi defendida por Amos Funkenstein, por exemplo, que se refere “ao que se pode chamar a transparência de Deus no séc. XVII. Não quero necessariamente dizer que os pensadores do séc. XVII afirmavam sempre saber mais sobre Deus do que os teólogos medievais. Para alguns, Deus permanecia um deus absconditus, sobre o qual pouco se podia saber. O que quero dizer é que afirmavam que o que sabiam sobre Deus, fosse muito ou pouco, era ideias precisas, “claras e distintas.”” Imaginar que podemos referir-nos a Deus usando ideias precisas, “claras e distintas” é claramente a antítese do que a doutrina da analogia ensina, e se Funkenstein tem razão, parece ter havido aqui uma mudança significativa na compreensão da linguagem teológica. Mas esta mudança linguística não seria tão significativa não fosse o facto de acarretar consigo uma imensa revolução no modo de conceber Deus.

Que essa mudança linguística tenha implicações para a concepção moderna de Deus não deve ser surpreendente, dado que Tomás tinha a intenção de preservar a transcendência de Deus com a sua omniabrangente doutrina da analogia. Com o abandono ou marginalização e enfraquecimento do comprometimento com a analogia, era talvez inevitável que trouxesse consigo uma dissolução ou pelo menos uma mudança na noção do que o que significa Deus ser “transcendente.” Se a linguagem pode agora ser predicada de Deus do mesmo modo inequívoco com que é predicada das coisas do mundo, a implicação disto é que Deus está, num certo sentido, mais perto das coisas do mundo, na verdade a tal ponto que se torna ele próprio uma “coisa.” Por outras palavras, há uma mudança qualitativa no que é Deus. Mas para preservar a transcendência de Deus, os pensadores modernos começaram ao invés a sublinhar a diferença quantitativa entre Deus e as coisas mundanas. De modo que a transcendência de Deus sobre o mundo acabou por se exprimir  em termos de uma distância quantitativa do mundo e não em termos de uma diferença qualitativa. Isto significou que a bondade de Deus diferia da bondade mundana no sentido em que era muito maior (em termos quantitativos) e não no sentido de ser um tipo ou qualidade diferente de bondade, como Tomás teria sustentado. De igual modo, a existência de Deus passou a ser compreendida como algo que difere da existência humana no sentido de ser infinitamente maior (em termos quantitativos) e não um tipo ou qualidade diferente de existência.

Uma consequência disto foi que o “ser” de Deus deixou de ser concebido como um mistério ontologicamente transcendente, passando a ser concebido como uma “substância” especificável no mundo com uma “localização” identificável. Assim, emergiu uma família de ideias a que Funkenstein chama o “corpo de Deus.” À medida que a dignificação científica da linguagem precisa, unívoca e mecânica infiltrou tanto o pensamento filosófico como o teológico, tornou-se necessário especificar que gênero de “coisa” era Deus. Assim, Henry More, por exemplo, defendeu que o mundo tanto é composto por corpos espirituais como por corpos sólidos. Os corpos espirituais são diferentes dos corpos sólidos por serem penetráveis e poderem contrair-se e expandir-se. Para More, Deus é o espírito mais elevado, de modo que todos os outros espíritos dependem dele. Enquanto espírito, Deus tem extensão, mas a sua extensão é infinita; é o próprio espaço. O que há de significativo nisto é que Deus está aqui a ser concebido como algo que tem um lugar e função identificável no seio do mundo natural. Como Funkenstein escreve, “o conceito de divino de More equivale ao conceito de uma harmoniosa soma final de todas as forças mecânicas e dotadas de propósito do universo”

More não estava de modo algum sozinho. Apesar de a teologia moderna (juntamente com a filosofia e a ciência) ser palco de vigorosa discórdia e debate, este era contudo conduzido contra um pano de fundo aceite de comum acordo, no qual a “domesticação” de Deus parecia dada como garantida. Buckley, por exemplo, detecta duas tendências principais no desenvolvimento do teísmo moderno. Uma tendência racionalista e matemática foi introduzida por Descartes e desenvolvida por Nicolas Malebranche. A outra foi mais empírica e mecânica, derivando de Isaac Newton e cultivada por Samuel Clarke. As concepções resultantes de Deus eram muito diferentes. Mas o que tinham em comum era uma concepção de Deus como uma “coisa” no mundo com uma “substância” definível e uma “localização” identificável que poderia ser referida aproximadamente do mesmo modo que as outras coisas. Os teólogos modernos continuavam a insistir na transcendência de Deus, mas esta diferença era qualitativa e não quantitativa, resultando daqui que esta transcendência se tornou epistemológica em vez de ontológica. Ou seja, porque se considerava que o “ser” de Deus era da mesma qualidade que o “ser” humano (de modo que faltava uma transcendência ontológica), a alteridade de Deus passou em seu lugar a ser preservada sublinhando a sua transcendência epistemológica, de modo que Deus se tornou cada vez mais oculto e incognoscível, dando assim origem à agnose de Kant e ao afastamento gradual mas inevitável de Deus.

O Deus que o ateísmo rejeitava, consequentemente, era uma concepção de Deus muito específica, peculiar e moderna. Se todo o ateísmo é uma rejeição de uma forma específica de teísmo, é visível que o ateísmo moderno foi a rejeição de uma forma moderna de teísmo, na qual Deus era uma substância que podia ser inequivocamente referida e ao qual se atribuía um lugar e função específicos no mundo natural. Para alguns estudiosos, esta forma de teísmo não marcava apenas um rompimento radical de grande parte do teísmo medieval: era também em última análise insustentável, tornando o ateísmo quase inevitável. Como observa Funkenstein, “É clara a razão pela qual um Deus descritível em termos inequívocos, ou ao qual são até atribuídas características e funções físicas, acaba por se tornar tanto mais fácil de descartar. Como hipótese científica, mostrou-se mais tarde que é supérfluo; como um ser, mostrou-se que era uma mera hipóstase de ideais e imagens humanas, racionais, sociais e psicológicas.”

Mas isto levanta a questão de saber como Deus acabou afinal por ser reconcebido deste modo peculiarmente moderno. Tratou-se de uma corrupção secular de um teísmo autêntico? Foi a teologia invadida pelos poderes alheios da filosofia e da ciência seculares, dando origem a este Deus quase filosófico e quase científico? Foi o teísmo forçado a vender-se a estes ataques externos? O que estas questões sugerem é que o advento da modernidade se caracteriza pela emergência autônoma de uma mundividência científico-racional que respondia à problemática de um teísmo anacrônico no seu seio começando por o distorcer para depois acabar por rejeitá-lo. Contudo, há uma linha de argumentação forte contra tal análise. Ao invés de considerar que uma teologia “inocente” estava a ser atacada e arruinada por um secularismo “maligno,” argumenta-se que no seio da própria teologia medieval ocorreram certos lances que simultaneamente causaram a mudança de natureza do teísmo e estabeleceram os fundamentos epistemológicos de uma mundividência imanente, unívoca e, em última análise, consequentemente, ateia. Por outras palavras, o ateísmo não constituiu realmente um desafio externo ao teísmo; foi ao invés uma revolução no seio da própria teologia que deu origem ao ateísmo. O que significa defender que as origens do ateísmo moderno são em última análise teológicas.

4. As origens teológicas do ateísmo moderno
Vimos que uma das características principais do teísmo contra a qual o ateísmo moderno reagiu foi a concepção dos atributos de Deus segundo a qual estes pertencem à mesma ordem ou qualidade dos atributos humanos, tendo-os Deus todavia num grau infinitamente maior. Em consequência disto, a linguagem podia aplicar-se univocamente a Deus. Se, como vimos também, esta concepção de teísmo contrasta com a de Tomás, somos conduzidos a perguntar onde, quando e como esta concepção peculiarmente moderna de teísmo emergiu. Esta é precisamente a pergunta formulada pelo teólogo suíço Hans Urs von Balthasar e, mais recentemente, por Éric Alliez, Catherine Pickstock e William C. Placher, entre outros. Para estes pensadores, a viragem dá-se já no séc. XIV com o padre e teólogo franciscano João Duns Escoto. Pois foi Duns Escoto que rejeitou explicitamente a diferença entre o ser divino e o ser humano.

Para Tomás, foi essencial sublinhar que o “ser” não é algo partilhado por Deus e pela humanidade; ao invés, o “ser” só “é” na medida em que emerge de Deus e é criado por Deus. Só assim se preserva a prioridade ontológica de Deus. Se tanto Deus quanto a humanidade partilham a mesma qualidade de “ser,” então tanto Deus como as criaturas seriam membros do mesmo gênero, coisa que Tomás rejeita explicitamente. Tomás afirma que “Deus não é uma medida proporcional ao que é medido; logo, não se segue que ele e as suas criaturas pertençam à mesma ordem.” É por esta razão, como vimos, que Tomás insistia que toda a linguagem predicada de Deus era analógica. Duns Escoto questionou este entendimento. Incorporando ideias sagazes do averroísmo do séc. XIII, a sua asserção fundamental era que “o ser é unívoco ao criado e ao incriado.” Hans Urs von Balthasar afirma que Duns Escoto fez esta viragem fundamental em resultado de uma preocupação em garantir o lugar da “razão” face à teologia cristã. Agora, a razão entende o ser e só o ser como o seu conceito ilimitado primeiro, e transcende assim a distinção entre o Ser finito e infinito: “O conceito tem não apenas universalidade lógica (expressiva), como também universalidade metafísica, pois capta o Ser na sua generalidade objectiva (“católica”), de modo que pode ser univocamente aplicado ao Ser infinito e finito, isto é, a Deus e ao mundo, à substância e aos acidentes, ao ato e à potência.”

Em consequência disto, o “ser” já não era algo que emergia e era criado por Deus, mas algo partilhado por Deus e pela humanidade, ainda que a “parte” deste “ser” que cabia a Deus fosse infinitamente maior do que a que cabia aos seres humanos. Como escreve Duns Escoto, “Assim, seja o que for que pertence ao “ser,” na medida em que é indiferente ao finito e ao infinito, ou na medida em que é próprio do Ser Infinito, não lhe pertence enquanto determinado por um gênero, mas previamente a qualquer dessas determinações, e consequentemente como transcendental e fora de qualquer gênero.” Com este lance, destruiu-se a diferença ontológica entre o ser de Deus e o ser humano, e para muitos comentadores isto marca um ponto crucial de viragem que estabeleceu as fundações não apenas do conceito peculiarmente moderno de teísmo, mas também da própria mundividência moderna. No contexto de uma discussão da obra de Duns Escoto, Éric Alliez, por exemplo, comenta: “O que se pode ver a constituir-se […] é um pensamento cujas fronteiras móveis acabam por conduzir à revolução científica destinada a fazer uma “época” da nossa modernidade.” Na medida em que o teísmo moderno se torna em última análise insustentável no seio da mundividência moderna, a “origem” do ateísmo moderno é talvez localizável em Duns Escoto, por mais que ele rechaçasse tal ideia.

Havia, é claro, uma distância maior a cobrir entre Duns Escoto e Descartes. Vimos que o compromisso de Tomás com a analogia era uma consequência da sua preservação da diferença ontológica. Quando se destrói a diferença ontológica, consequentemente, é de esperar que isto tenha um impacto considerável na doutrina da analogia. Se a concepção de Tomás da tarefa da analogia era encontrar uma via intermédia precária mas necessária entre a univocidade, por um lado, e a equivocidade, por outro, na esteira de Duns Escoto vemos as concepções de analogia a afastarem-se lentamente de uma via intermédia tomista e a aproximar-se de uma univocidade mais moderna. Vê-se ocorrer a mudança na obra de Tomás de Vio, Cardeal Caietano, especialmente na sua Analogia dos Nomes (1484), e depois, subsequentemente, na obra de Francisco Suárez, particularmente nas suas Disputationes metaphysicae (1597). Em ambos os pensadores encontramos uma rejeição de formas de analogia que sejam “indeterminadas,” “incertas” e que não tenham um “significado definido,” a favor de formas de analogia que se baseiem em “bases certas e demonstráveis.” É por causa destas mudanças que Jean-Luc Marion falou de uma “deriva univocista que a analogia sofre com Suárez e outros.” À luz desta deriva, a forma moderna de teísmo observada acima, com a sua concepção de Deus como uma “substância” com uma “localização” no mundo natural, e que pode ser referido univocamente com “ideias claras e distintas,” torna-se mais inteligível. Além disso, é argumentável que a abolição da diferença ontológica efetuada por Duns Escoto teve implicações não apenas para o teísmo, mas também para a metafísica e para a epistemologia. Com um só nível de ontologia, lançam-se as bases para uma mundividência “imanente,” no seio da qual uma realidade imanente se pode observar e “representar” de modo neutro. O mundo não é já visto como se participasse num nível ontológico superior, sendo ao invés auto-suficiente e explicando-se a si mesmo. Num tal mundo, a analogia, poesia, narrativa e retórica tornam-se supérfluas (no que respeita à epistemologia), e a representação, a observação e o método científico tornam-se epistemologicamente privilegiados. Não é difícil ver como o ateísmo se torna inevitável, num mundo assim. Dado que existe apenas um só nível de ontologia, Deus não pode ser visto como algo que transcende a ontologia deste mundo, tendo de algum modo de ser integrado — é preciso dar-lhe uma função e uma localização — na ontologia deste mundo. Como tal, Deus torna-se uma “coisa” (apesar de ser uma “coisa” suprema) entre as outras coisas deste mundo. Mas esse Deus corre o risco não apenas de parecer incrível ou inacreditável (uma “coisa grande” que depressa se torna demasiado obviamente uma projeção das “coisas comuns”), mas também, à medida que o mundo se torna mais capaz de se explicar a si mesmo e mais auto-suficiente, cada vez mais supérfluo. Num tal mundo, o ateísmo torna-se quase irresistível.

Deve-se notar que nem todos os comentadores querem atribuir as culpas (ou o crédito) destas inovações apenas a Duns Escoto. Mas a identificação da figura ou figuras especificamente inovadoras é menos importante do que o facto de que há uma convicção generalizada de que as origens da modernidade e, por implicação, do próprio ateísmo, repousam no seio da teologia. Como é apropriado de um termo negativo e parasitário, o “ateísmo” não emergiu autonomamente como um modo independente de pensar, emergindo antes como um resultado de certos lances intelectuais no seio da teologia e das mudanças daí resultantes na concepção prevalecente de teísmo. O ateísmo moderno foi a rejeição de uma forma específica de teísmo, uma forma de teísmo que só pode ser entendida no contexto das mudanças ontológicas e epistemológicas que temos vindo aqui a discutir. Além disso, a nossa discussão ajudou-nos a chegar a uma maior compreensão de certas observações que fizemos no início. É agora mais fácil ver por que [1] o ateísmo e a modernidade estão tão intimamente ligados. À luz da análise apresentada, podemos ver por que cada um é quase inconcebível sem o outro. É também agora mais fácil ver como é importante que o termo “ateísmo” seja negativo e parasítico; vimos por que é quase impossível compreender a forma moderna de teísmo (ou qualquer outra) sem compreender adequadamente a forma particular de teísmo contra a qual se insurge.

5. O fim da modernidade: O fim do ateísmo?
Se for verdade que o ateísmo e a modernidade estão de tal modo ligados que a modernidade parece quase necessariamente culminar no ateísmo, o que acontece quando a modernidade chega ao “fim”? Muitas foram as vozes que anunciaram o “fim da modernidade” em décadas recentes, e isto faz-nos sem dúvida parar para pensar, sejamos teístas ou ateus. É claro que quem defende que a modernidade é, em exclusivo, o culminar da verdade, pode muito bem defender que a modernidade nunca chegará ao “fim,” e que foi a própria história que chegou ao fim. Mas para quem tem uma mentalidade menos apocalíptica, o “fim” da modernidade pode pelo menos ser contemplado. Se, como sugerimos, a modernidade é menos um “período” e mais uma “sensibilidade,” então a conversa do seu “fim” pode muito bem ser prematura e insuficientemente subtil. Mas podemos ao invés, talvez, falar mais modestamente (e mais apropriadamente) de um enfraquecimento da hegemonia moderna, ou, como escreve Jacques Derrida mais sucintamente, do “fechamento” da modernidade. Mas se o fizermos, não podemos ignorar as implicações para o ateísmo. Como John D. Caputo sugere (no seu capítulo deste volume), talvez o “fechamento” da modernidade traga consigo também o “fechamento” do ateísmo. Em qualquer caso, se a modernidade e o ateísmo estão tão intimamente ligados como temos vindo a sugerir, o “fechamento” da modernidade não pode deixar de perturbar o ateísmo.

Há quem argumente que o eclipse da modernidade significa o eclipse tanto do teísmo moderno quanto do ateísmo moderno, permitindo a possibilidade do regresso a formas mais medievais (e mais autênticas) de teísmo. Algo paradoxalmente, argumentam que o advento do “pós-moderno” permite a repetição (ainda que em moldes diferentes) do pré-moderno e, especificamente, de formas pré-modernas de teísmo. Por outro lado, outros argumentam que o “pós-moderno” está tão ligado ao “moderno” que não permite qualquer suposto regresso do pré-moderno. O caminho adiante, sugerem, não é tanto um regresso ao teísmo pré-moderno mas, ao invés, tentativas inovadoras para pensar para lá ou entre o teísmo e o ateísmo, o que é, com efeito, uma tentativa de pensar para lá da metafísica. O futuro, parece, está aberto; talvez mais aberto do que o esteve desde há algum tempo. Isto torna as previsões mais arriscadas do que é normal. Mas de uma coisa podemos ter a certeza: O destino do ateísmo parece inevitavelmente ligado ao destino da modernidade.

Nota do tradutor: [1] Há uma confusão linguística desnecessária quanto ao significado correto de “por que” e de “porque.” A distinção é simples: “Não é claro por que há sofrimento” significa o mesmo que “A razão da existência do sofrimento não é clara,” ao passo que “Não é claro porque há sofrimento” significa o mesmo que “Por haver sofrimento, isso não é claro.” Em inglês a distinção é óbvia: “It is not clear why there is suffering” é marcadamente diferente de “It is not clear because there is suffering.” Pensa-se por vezes que sem o termo “razão” ou “motivo” não se deve escrever “por que” mas sim “porque,” mas isto é inaceitável porque provoca uma ambiguidade desnecessária e porque não faz sentido escrever ora de uma maneira ora de outra tendo a frase precisamente o mesmo significado. Nesta tradução, usa-se por isso sistematicamente “por que” em todos os casos em que em inglês se escreve “why”.

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