Autor: Jan Bremmer
Tradução: Desiderio Murcho, no livro Um mundo sem Deus: Ensaios sobre o ateísmo (pp. 17 à 26)

Índice:
Ateísmo na antiguidadeParte 01Parte 02
Ateísmo na história modernaParte 01Parte 02

2. O período helenístico

A morte de Sócrates foi o fim de uma era. A maior parte dos filósofos compreenderam a deixa e foram cuidadosos ao expor as suas perspectivas. Houve excepções ocasionais, como Teodoro de Cirene (ca. 340–250 a.C.), que é mencionado sobretudo com Diágoras como o ateu por excelência. Contudo, os nossos indícios baseiam-se sobretudo em historietas e é difícil reconstruir a sua teologia.

Há dois desenvolvimentos dignos de nota no período helenístico. Primeiro, começamos a encontrar uma listagem de ateus num index atheorum. O exemplo mais antigo é de Epicuro (341–270 a.C.), no livro XII do seu Sobre a Natureza, que deve ter sido redigido por volta de 300 a.C.61 A crítica de Epicuro a Protágoras, Pródico, Crítias e possivelmente Diágoras como “doidos furiosos” foi provavelmente incluída no contexto de saber como começaram os homens a acreditar em deuses e a venerá-los. O próprio Epicuro não era ateu, mas os filósofos posteriores, provavelmente os estoicos, atacaram as premissas do seu sistema físico, inferiram que os deuses não tinham qualquer lugar necessário no seu sistema, e rotularam-no ditosamente de ateu. Depois de Epicuro, no fim do séc. II a.C., o cético acadêmico Clitómaco alargou a lista, no seu tratado Acerca do Ateísmo.63 Clitómaco era um partidário do representante mais importante da academia céptica, Carnéades (ca. 214–128 a.C.), que provavelmente alegara que Epicuro não queria realmente dizer o que tinha dito sobre os deuses. Por sua vez, Clitómaco foi seguido por Cícero, no seu De Natura Deorum (I.1.63), Pseudo-Aécio (ca. 50–100 d.C.), e, lá para o fim do séc. II d.C., por Sexto Empírico (Adversus Mathematicos 9.50–58).

O segundo desenvolvimento foi o sucesso imediato da teoria de Pródico sobre os deuses; veja-se o seu reflexo depois de Eurípides (ver acima) em poetas e historiadores posteriores. Contudo, o seu seguidor mais famoso viveu bastante mais tarde. No primeiro quartel do séc. III a.C., o alexandrino Evémero escreveu o Registo Sagrado, no qual transformou a sucessão hesiódica de Úrano, Cronos e Zeus numa dinastia de reis mortais que habitaram uma ilha fictícia chamada Pancaia.67 O objectivo de Evémero era manter os deuses mas apresentá-los de um modo que as pessoas sofisticadas pudessem acreditar. Só nos restam alguns fragmentos, mas Sexto Empírico parece resumir a sua obra ao dizer que “os deuses tradicionais foram mortais importantes e consequentemente foram deificados pelos seus contemporâneos e considerados deuses.” Evémero teve bastante sucesso em Roma, onde o poeta Éneo (239–169 a.C.) traduziu a sua obra por volta de 200 a.C. em prosa latina, talvez para dar origem a um clima espiritual favorável à deificação de Cipião Africano, o vencedor de Cartago e Aníbal. Éneo não fez uma tradução literal; expandiu um pouco o original e explicou os nomes gregos ao seu público romano, junto do qual o seu trabalho acabou por ter grande sucesso, tendo sido lido por Varrão (116–127 a.C.) e Cícero, e acabando por dar munições aos cristãos.

Não devemos deixar que as listas cada vez maiores de ateus ocultem o facto de que, na realidade histórica, nenhuns ateus praticantes são mencionados nas nossas fontes deste período. Nos primeiros dois séculos da nossa era, o ateísmo tinha-se tornado principalmente um rótulo para usar contra oponentes filosóficos, mas não para levar muito a sério. Mesmo os judeus sabiam entrar no jogo e reprovaram os egípcios pelo seu ateísmo. Em meados do séc. II a.C. torna-se visível um novo desenvolvimento. Em A Vida de Alexandre de Abonouteico, a biografia de um dirigente religioso que fundou um novo culto em Abonouteico, uma pequena cidade em Ponto, na Ásia Menor, Luciano, o satírico malicioso, menciona que Alexandre tinha excluído do seu culto “o ateu, o cristão e o epicurista” (25, 38). As consequências graves deste tipo de atitude tornam-se visíveis em Esmirna. No Martírio de Policarpo, que provavelmente data de cerca de 160 d.C., um membro de um grupo de mártires cristãos, o jovem Germânico, puxou o animal que devia matá-lo, talvez um leopardo, para cima de si. Reagindo a isso, a multidão gritou: “Fora com estes ateus. Vão buscar Policarpo!” — o velho bispo dos cristãos (3.2). Quando policarpo foi apanhado e interrogado pelo governador romano, este tentou salvá-lo e disse-lhe: “Abjura. Diz “Fora com os ateus!.”” Policarpo olhou para a multidão, mostrou-lhes o punho e disse: “Fora com os ateus!” (9.2). Policarpo não foi o único mártir confrontado com a acusação. Quando, em 177 d.C., um grupo de mártires foi executado em Lyon, um deles, o jovem Vécio Epagato, pediu uma audiência ao perfeito para poder explicar que os cristãos eram “inocentes de ateísmo e impiedade.”

A acusação de ateísmo devia ser muito generalizada, pois os apologistas cristãos davam muitas vezes o seu melhor para refutar a acusação. Por volta de finais do séc. II d.C., Taciano (Oratio ad Graecos 27.1) menciona mesmo que os pagãos chamavam aos cristãos atheotatous, “os mais ateus”! Só Justino na Apologia (1.6), redigida por volta de 154–155 d.C., nos diz quem fez a acusação. Foi o cínico Creceno, que teria também sido o responsável pelo seu martírio. Justino admite que os cristãos eram realmente ateus no que respeita à sua atitude perante os deuses pagãos. É de facto difícil ver como os pagãos poderiam ter pensado de outro modo, dado que os cristãos não tinham templos ou estátuas de divindades e não faziam sacrifícios. Aos olhos do filósofo pagão Celso (ca. 180), citado por Orígenes (184–254) no seu Contra Celsum (7.62: redigido ca. 249), isto tornava os cristãos comparáveis a outros povos incivilizados que também não tinham deuses, como os bárbaros Citas ou os nómadas Líbios. A acusação foi longeva e continuava viva até ao séc. IV.73 Dificilmente é surpreendente que os judeus fossem vítimas das mesmas acusações, apesar de terem um templo. Contudo, a sua posição isolada tornava-os também vulneráveis, e Juliano o Apóstata (Contra Galileos 43) afirmou mesmo que os cristãos tinham herdado o ateísmo dos judeus.

3. O período Cristão

Os cristãos não demoraram a chamar a si a possibilidade de rotular os oponentes, pois Justiniano já chamava aos companheiros cristãos de quem discordava “ateu[s] e heréticos ímpios.” Contudo, demoraram algum tempo a adoptar uma estratégia para refutar a acusação de ateísmo. No Apologeticus (24) de cerca de 200 d.C., Tertuliano (ca. 160–240) tentou refutar a acusação argumentando que os deuses pagãos não eram realmente deuses mas demónios. Consequentemente, os cristãos não poderiam ser realmente ateus! Alguns cristãos agora tentavam até virar as coisas ao contrário. Orígenes acusou os pagãos de um “politeísmo ateu” ou de um “ateísmo politeísta.” Clemente de Alexandria (ca. 150–215) foi até mais longe e afirmou que o verdadeiro ateu era quem não acreditava em Deus ou na sua Providência, sendo Epicuro o seu exemplo principal. Surpreendentemente, tentou reabilitar os ateus “canônicos,” como Diágoras, Evémero e Teodoro, afirmando que estes tinham pelo menos reconhecido a tolice das ideias pagãs.

É tempo de terminar. O nosso exame mostrou que a antiguidade é importante para a história do ateísmo em pelo menos três aspectos. Primeiro, os gregos descobriram o ateísmo teórico, que “pode ser visto como um dos mais importantes acontecimentos na história da religião.” Segundo, os gregos inventaram o termo atheos, que os romanos adoptaram como atheus, o que deu origem às palavras “ateu” e “ateísmo” nos primórdios dos tempos modernos. Terceiro, gregos e romanos, pagãos e cristãos, depressa descobriram a vantagem do termo “ateu” como meio de rotular os oponentes. A invenção do ateísmo iria abrir uma nova via de liberdade intelectual, mas permitiu também dar um novo rótulo aos inimigos. O progresso raramente chega sem um preço.

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