Autor: Stephen Maitzen
Tradução: Gilmar Santos, publicado originalmente no Rebeldia Metafísica

Resumo: Segundo o amplamente discutido argumento do ocultamento divino, a existência de Deus é refutada pelo fato de nem todas as pessoas acreditarem em Deus. O argumento provocou uma variedade impressionante de réplicas teístas, mas nenhuma superou — ou, como sugiro, poderia superar — o desafio colocado pela distribuição irregular da crença teísta ao redor do mundo, um fenômeno para o qual explicações naturalistas parecem muito mais promissoras. A “demografia do teísmo” frustra qualquer explicação sobre as razões pelas quais a descrença sempre é condenável ou sobre os motivos pelos quais Deus permite a descrença inocente. Tais dados também lançam dúvidas sobre a existência de um sensus divinitatis: o conhecimento de Deus que os epistemólogos reformados afirmam ser inato em todos os seres humanos normais. Finalmente, a distribuição demográfica torna o argumento do ocultamento divino, sob certos aspectos, um argumento ateológico ainda mais poderoso do que o mais conhecido e popular argumento do mal.

O argumento do ocultamento divino
De acordo com o argumento do ocultamento divino (AOD), a existência de Deus é refutada pelo fato de nem todas as pessoas acreditarem em Deus. O argumento provocou ao longo dos anos uma variedade impressionante de réplicas teístas, e tornou-se tema de um vigoroso debate contemporâneo. Entretanto, nenhuma destas respostas superou — ou, eu sugiro, poderia superar — o desafio colocado pela distribuição irregular da crença teísta ao redor do mundo, um fenômeno para o qual explicações naturalistas parecem mais promissoras[1]. A “demografia do teísmo” frustra qualquer explicação de por que a descrença sempre é condenável ou de por que Deus permite a descrença inocente. Ela também lança dúvidas sobre a existência de um sensus divinitatis: o conhecimento de Deus que os epistemólogos reformados alegam ser inato em todos os seres humanos normais. Além disso, tais fatos tornam o ADH, em certos aspectos, um argumento ateológico ainda melhor do que o mais conhecido argumento do mal.

O ADH possui duas versões principais, que descreverei num grau de detalhamento suficiente para os própositos presentes. A primeira versão começa com a premissa de que o Deus pessoal descrito pelo monoteísmo tradicional é amor em grau insuperável[2]. A partir desta premissa deduz-se a conclusão intermediária de que Deus procuraria um relacionamento pessoal amoroso com cada uma das criaturas humanas sempre que tal relacionamento fosse cognitiva e afetivamente possível. A partir desta conclusão intermediária, infere-se que Deus traria cada ser humano à crença em sua existência, dado que a formação de uma relação amorosa genuína entre duas pessoas exige que cada pessoa acredite na existência da outra. O argumento então afirma o que seus proponentes consideram indiscutível: alguns seres humanos que falham em acreditar em Deus são, no entanto, cognitiva e afetivamente capazes de desfrutar de uma relação amorosa com Deus. Conforme o ponto de vista de seus proponentes , algumas pessoas que em todos os sentidos relevantes poderiam  acreditar em Deus não o fazem, uma situação que Deus não permitiria se existisse. O argumento conclui, nestas bases, que nenhum Deus nos moldes do monoteísmo tradicional existe.

A segunda versão começa com uma premissa mais particular a respeito do Deus descrito pelo Novo Testamento, especialmente sob a interpretação que o cristianismo evangélico faz desse texto[3]. De acordo com esta versão do AOD, o Novo Testamento (evangelicamente interpretado) deixa claro que Deus deseja que todas as suas criaturas humanas acreditem na veracidade da “mensagem do evangelho”, mensagem esta que possui como um de seus elementos decisivos a afirmação de que “o Soberano do universo enviou seu Filho para ser o Salvador da humanidade”[4]. A especificidade desta premissa inicial permite à segunda versão avançar mais rapidamente que a a primeira: o Deus descrito pelo cristianismo evangélico faria com que todas as pessoas cognitiva e afetivamente capazes acreditassem na mensagem do evangelho. Todavia, somente uma minoria de todos os seres humanos cognitivamente capazes  acreditaram na mensagem do evangelho, incluindo a afirmação de que o soberano do universo enviou seu filho para ser o salvador da humanidade. Portanto nenhum Deus do tipo descrito pelo cristianismo evangélico existe.

Descrevi as duas versões do AOD em termos grosseiros, mas espero que não tanto a ponto de obscurecer a plausibilidade ao menos aparente de cada versão. Na primeira versão, raciocinamos a partir do conceito de um Deus insuperavelmente amoroso para a afirmação de que qualquer Deus com esta característica desejaria um relacionamento pessoal recíproco com qualquer outra pessoa que tivesse criado: o amor de uma pessoa por outra, segundo este raciocínio, alcança sua expressão suprema somente numa relação pessoal recíproca, e assim se a Deus faltasse o desejo de se relacionar com pessoas humanas dessa maneira, o amor de Deus seria ultrapassável pelo de um ser como Deus que possuísse tal desejo. Em seguida assinalamos a impossibilidade conceitual de um relacionamento pessoal recíproco no qual ou uma das partes falha em acreditar, ou positivamente descrê, na existência da outra. Um Deus onisciente também reconheceria esta impossibilidade conceitual e assim reconheceria que a crença humana em Deus é necessária para o tipo de relacionamento com seres humanos que Deus deseja em virtude de sua essência insuperavelmente amorosa. Se Deus deseja o resultado, então por que, no caso de todo humano descrente, Deus não fez uso dos meios necessários para atingir seu objetivo? A segunda versão começa com a proclamação do Novo Testamento de que Deus quer que todos os seres humanos acreditem na mensagem do Evangelho, e desta maneira esta versão supostamente não precisa de nenhuma declaração sobre o amor insuperável de Deus, ou qualquer inferência a partir da afirmação de que Deus deseja formar relacionamentos amorosos, ou qualquer inferência a partir deste desejo para a ausência de descrença[5]. Se Deus deseja que todos acreditemos na mensagem do evangelho, então por que tantas, ou mesmo uma única pessoa que seja, não acredita nesta mensagem?

A distribuição demográfica do teísmo
A medida em que se tornaram mais cosmopolitas ao longo dos séculos, os teístas se conscientizaram de que uma parcela considerável da população mundial nunca compartilhou da crença teísta num Deus supremo e pessoal e de que em alguns locais os teístas nunca foram mais do que uma ínfima minoria. Atualmente é um conhecimento comum entre pessoas educadas que as perspectivas religiosas diferem largamente ao redor do globo e que a crença teísta de maneira alguma é disseminada de maneira homogêna entre todas as culturas. Um europeu do século XVI como João Calvino talvez poderia ser perdoado por seu paroquialismo a respeito da crença na existência do que ele chama “Deus o Criador”:

Certamente, se existe qualquer região a respeito da qual seja possível supor que Deus é desconhecido, o mais provável é que tal instância exista entre selvagens o mais remotamente apartados da civilização. Mas, como um pagão [Cícero] nos diz, não existe nação tão bárbara, nem raça tão bestial a ponto de seus membros não estarem imbuídos da convicção de que existe um Deus[6].

Mas já faz algum que tempo estamos mais bem informados sobre isso[7]. Enquanto antropólogos nos dizem que a religião num sentido amplo do termo, é encontrada em todas as culturas, o mesmo não pode ser dito sobre “a convicção de que existe” o que Calvino reconheceria como Deus. Ademais, é claro, algumas civilizações bastante sofisticadas com histórias impressionantes nunca contiveram mais do que uma irrisória minoria de teístas.

Lembremos que o problema do ocultamento divino resulta em primeiro lugar da natureza do Deus pessoal criador do teísmo, cujas perfeições incluem a amorosidade insuperável e que, de acordo com o cristianismo evangélico, deseja que todas as pessoas acreditem na mensagem do Evangelho. A descrença se torna enigmática se um ser definido desta maneira existe. Por conseguinte, interpretar o teísmo de forma mais genérica, de forma a significar, digamos, a mera crença no sobrenatural, não refuta o AOD; isso é uma mera mudança de assunto. Reconhecemos, a crença no sobrenatural é mais difundida e mais uniformemente distribuida do que a crença em Deus, mas o ocultamento divino é um problema para o teísmo em particular, não para o sobrenaturalismo em geral.

Os dados demográficos contemporâneos esclarecem a distribuição desigual da crença teísta. A população da Arábia Saudita é pelo menos 95% muçulmana e portanto pelo menos 95% teísta, enquanto a população da Tailândia é 95% Budista e portanto no máximo 5% teísta. O total aproximado das populações é de 26 milhões de pessoas na Arábia Saudita e 65 milhões na Tailândia[8]. Presumivelmente estas amostras são grandes o suficiente para tornar as diferenças estatisticamente significativas e não apenas anomalias que desapareceriam se assumíssemos um ponto de vista adequadamente abraangente. Se esses dados estiverem mesmo que grosseiramente precisos, a distribuição da crença teísta é pelo menos altamente irregular e heterogênea entre estes dois países, e dificilmente eles são os únicos a apresentar esta disparidade.

Discussões publicadas do AOD, entretanto, raramente se referem a tais disparidades, talvez porque o debate central esteja concentrado em se o teísmo pode explicar a mera existência da descrença, sem levar em conta sua distribuição. Na introdução de sua antologia Divine Hiddenness: New Essays (2002), os editores Daniel Howard-Snyder e Paul K. Moser aludem à disparidade somente uma vez e ainda assim indiretamente, ao longo da descrição da contribuição de J. L. Schellenberg à antologia, contribuição essa que se refere exclusivamente à disparidade[9]. Nenhum dos artigos na coletânea avalia plenamente o problema. Em vez disso, a maioria dos autores oferecem e avaliam explicações para o ocultamento divino sem considerarem o fracasso destas explicações em esclarecer as atordoantes diferenças geográficas na incidência da crença teísta.

Os autores que explicam toda a descrença em termos de deficiências morais ou epistêmicas dos descrentes nunca lidam com a questão “Por que as deficiências variam dramaticamente segundo as fronteiras nacionais e culturais?”. Além disso, dada a pressuposição amplamente sustentada de que, grosso modo, deficiências epistêmicas e morais são distribuídas de maneira equilibrada entre as populações mundiais, é difícil  ver como esta questão poderia ser respondida. Os autores que reconhecem a existência da descrença inocente, e tentam explicar por que Deus a tolera, nunca levantam a questão sobre o porque de Deus permiti-la de maneira tão desigual. Em suma, considerando-se a gama de explicações oferecidas por autores de ambos os posicionamentos, seus pressupostos parecem rastreáveis a um período da história intelectual européia no qual as crenças dos não-europeus eram ou desconhecidas ou ignoradas.

Respostas ao AOD
As respostas teístas sobre o consentimento da descrença por parte de Deus geralmente caem em três categorias: respostas (1) afirmando que os descrentes sempre são culpáveis por sua descrença; (2) admitindo a descrença inocente mas insistindo que Deus possui boas razões específicas para permiti-la; ou (3) fracassando em lidar com o desafio ou mesmo em considera-lo seriamente. Podemos ser bem breves em nossa discussão destas respostas, uma vez que ficará claro que todas elas falham em explicar os fatos demográficos que são a base de minha crítica.

Na categoria 1, encontramos, por exemplo, a alegação de Jonathan Edwards (1703-1758) de que qualquer fracasso de seres humanos, normais em outras situações, em acreditar em Deus, deve refletir ‘ uma assombrosa estupidez mental, ocasionando uma insensibilidade ébria à verdade e à importância’ das doutrinas teístas. Porque, segundo Edwards, os seres humanos ‘tem atos voluntários sobre seus pensamentos’, eles são responsáveis por suas crenças e culpáveis se fracassam em acreditar em Deus[10]. Não me deterei para avaliar a suposição de Edwards de que alguém possui controle voluntário sobre suas crenças numa dada proposição, exceto para dizer que é altamente controversa: apenas tente acreditar voluntariamente que o número total de estrelas é par. Nem questionarei sua suposição de que alguém é sempre culpável por exibir ‘estupidez assombrosa’ ou ‘insensibilidade ébria’. Nada disso importa uma vez que, mesmo admitindo as suposições de Edwards, sua teoria deixa os dados demográficos inexplicados, pois a estupidez e a insensibilidade afligem os seres humanos em proporções iguais ao redor do globo.

Edwards foi um calvinista convicto, e a categoria 1 inclui a igualmente inabalável explicação calvinista para o ocultamento divino: a descrença é causada por, e assim um sinal de, pecaminosidade não regenerada. Não é totalmente claro se Calvin atribui a descrença à pecaminosidade pessoal dos descrentes em particular ou, em vez disso, ao pecado original que conspurca ao nascer todo membro da humanidade decaída. Se ao último, então não é óbvio que os descrentes são culpáveis po estarem nesta condição, mesmo se, de acordo com a doutrina de Calvino, eles são condenados por isso. Ademais, considerando-se a doutrina de Calvino de que aqueles dentre nós que desfrutam de um relacionamento pessoal com Deus foram predestinados dessa maneira, não é óbvio que os descrentes merecem a culpa por sua condição mais do que os crentes merecem o mérito pela deles. Finalmente, mesmo se aceitarmos as explicações da categoria 1 e dessa maneira responsabilizar todos os descrentes por sua descrença, o problema do ocultamento divino ainda pode persistir. Muitas vezes pode-se esperar que um genitor amoroso ajude seu filho ou sua filha a sair de uma situação miserável, ainda que a criança seja de alguma forma responsável por estar em tal situação. Tanto mais para um Deus inultrapassavelmente amoroso: a culpabilidade dos descrentes não isentaria automaticamente Deus da obrigação de remediar sua descrença, nem depreciaria automaticamente a expectativa legítima de que Deus o fizesse. Em qualquer caso, contudo, nenhuma destas considerações teológicas importa para os objetivos presentes, uma vez que a explicação de Calvino para a descrença passa por cima dos dados demográficos. Por que razão sobre a terra (literalmente) deveria o território da Tailândia abrigar uma alta proporção de almas predestinadas à danação e o da Arabia Saudita ou (melhor, para Calvino) da Europa pós-Reforma uma proporção muito menor?

As respostas bem mais populares da categoria 2 tentam explicar por que Deus pode permitir a descrença inocente. Em sua introdução, Howard-Snyder e Moser sumarizam várias de tais explicações[11]. Deus pode permitir a descrença inocente:

(1) a fim de possibilitar que as pessoas livremente o amem, confiem nele e obedeçam-no; caso contrário, seríamos coagidos de uma maneira incompatível com o amor;
(2) com o objetivo de impedir uma resposta humana baseada em motivos impróprios  (como o medo de punição);
(3) porque (caso contrário) os humanos se relacionariam com Deus e com seu conhecimento de Deus de maneiras arrogantes e presunçosas (e como consequencia fracassariam em desenvolver) as atitudes internas essenciais a um relacionamento apropriado com Ele;
(4) Porque seu ocultamento nos leva a reconhecer o quão miserável e desamparada nossa vida é quando a conduzimos por nossa conta, sem Deus, e desta maneira nos estimula a procura-lo humildemente arrependidos;
(5) porque se ele tornasse sua existência evidente o bastante para impedir a descrença inocente, o senso de risco exigido por uma fé passional seria reduzido de maneira censurável;
(6) porque se ele tornasse sua existência clara o suficiente paa impedir a descrença inocente, a tentação para duvidar de sua existência não seria possível, a diversidade religiosa seria repreensivelmente reduzida, e os crentes não teriam tantas oportunidades para auxiliar outras pessoas em iniciar relacionamentos pessoais com Deus;

ou

(7) a fim de permitir aos descrentes inocentes a oportunidade de desenvolver a disposição para amar a Deus no momento em que se tornarem crentes ou em vez disso, se eles já possuírem essa disposição mas pelas razões erradas, com o objetivo de que eles a desenvolvam pelas razões corretas.

Dois problemas confrontam as explicações desta categoria e qualquer outra similar a elas. Primeiro, excetuando-se talvez uma, elas falham em lidar com, muito menos explicar, a distribuição demográfica do teísmo. Segundo, em sua tentaiva de explicar o valor da descrença em termos dos bens que ela torna possível e dos males que ela evita, estas explicações arriscam tornar um mistério a crença em Deus. Se, por exemplo, permitir o importante ‘senso de risco exigido pela fé passional’ implica tornar possível a descrença inocente, então o que pode ser dito em favor do tipo de crença inabalável e inflexível em Deus que o clero frequentemente aplaude e exalta em seus paroquianos, especialmente quando os paroquianos o exibem em meio ao sofrimento? Mostrariam esses crentes resolutos uma atitude religiosa mais admirável se em vez disso eles permitissem que a falta de evidência teísta conclusiva enfraquecesse sua confiança? Outrossim, se as evidências que tornariam a crença em Deus irresistível também privariam os crentes de um tipo importante de liberdade, o que acontece com a liberdade daqueles inúmeros crentes que alegam que a existência de Deus lhes é certa como qualquer outra coisa em que eles acreditam[12]? Se a permissão de Deus para a descrença inocente nos traz tantos benefícios, então por que as principais escrituras monoteístas, especialmente do cristianismo e do islamismo, não somente exaltam a crença como também as vezes condenam veementemente a descrença? Por que condenar um inevitável subproduto do sábio plano divino? Considerando-se nosso foco na demografia do teísmo, estas questões sobre o valor relativo da crença e da descrença podem ser descartados como mera retórica.

Das respostas listadas por Howard-Snyder e Moser, somente a resposta (6) chega perto de lidar com as disparidades geográficas da crença teísta, e somente porque levanta a possibilidade de que ‘a diversidade religiosa seria repreensivelmente reduzida’ se Deus estivesse menos oculto. Alguém pode previsivelmente questionar o valor líquido da diversidade religiosa encontrada no mundo atual, uma vez que boa parte dos conflitos ao redor do mundo, e indiscutivelmente uma parcela crescente deles, decorre ao menos parcialmente do choque de religiões que se contradizem umas às outras. Alguém também pode questionar o valor dos diversos sistemas de crença aos olhos daqueles que se consideramdetentores da verdade acerca de algum assunto crucial. Nenhuma pessoa sensata pensa que seria bom se o mundo abrigasse crenças divergentes sobre a inclusão de soda cáustica na dieta do leitor: ao contrário, há um conhecido fato sobre o assunto cujo conhecimento correto é importante que as pessoas possuam. O mesmo se aplica à questão da existência de Deus, particularmente a partir da perspectiva de alguém comprometido com o monoteísmo tradicional: ainda que uma diversidade de crenças nos auxilie a investigar quando não sabemos a resposta, os teístas acreditam conhecer de fato a resposta, perspectiva da qual a diversidade religiosa é apenas a proliferação de erros sobre um tema de importância capital. Mas ainda que alguém reconheça o valor da diversidade religiosa, a resposta (6) não faz nada para explicar porque esta diversidade se manifesta tantas vezes em aglomerados de crentes, vários dos quais existem isolados uns dos outros; por que esta tão valiosa diversidade não floresce no interior das culturas da Arabia Saudita e da Tailândia? As explicações teístas devem dar conta desta irregularidade geográfica em termos de razões que Deus pode possuir para permiti-la, e tais razões parecem difíceis de serem encontradas. Explicações não-teístas, incluindo explicações políticas e culturais oferecidas pelas ciências sociais, fazem isso brincando. De acordo com estas últimas explicações, a irregularidade da distribuição das crenças teístas tem tudo a ver com a dinâmica notoriamente aleatória da cultura humana e da política, e nada a ver com Deus: estes dados irregulares e confusos possuem causas irregulares e confusas, não-lineares.

William J. Wainwright, o colaborador da antologia que mais se aproxima de confrontar o desafio demográfico, esboça uma potencial resposta para ele: membros de culturas não-teístas carecem do benefício da crença teísta não porque sejam mais pecaminosos que os membros das culturas teístas e assim mais merecedores desta privação, mas por serem epistemicamente desfavorecidos. Os San do Kalahari, o autor escreve, não possuem a sofisticação científica e moral relativa ao que encontramos nas culturas modernas,
… e o que é verdadeiro sobre a ciência e a moralidade também parece ser verdadeiro sobre a religião.  As religiões pós-axiais(*) são espiritualmente mais sofisticadas ou desenvolvidas que aquelas que substituíram… Nada disso implica que os San sejam menos inteligentes, menos morais ou mesmo menos espirituais do que os cristãos, muçulmanos ou hindus modernos. Isso de fato implica que era menos provável que eles viessem a alcançar várias verdades religiosas valiosas… Os San não eram, enquanto grupo, mais pecaminosos do que os cristãos, o muçulmanos ou os hindus modernos. Eles eram apenas menos afortunados[13]
Por que deveriam os San, ou qualquer cultura, ser ‘menos afortunada’  neste aspecto? Por que Deus, como Wainwright coloca, ‘conferiu a graça salvífica a algumas culturas e não a outras’? A estas perguntas Wainwright oferece uma resposta especificamente cristã modelada em explicações encontradas em Calvino e Edwards: ‘A iluminação do Espírito Santo é necessária para o discernimento da bondade de Deus em Cristo sem o que a salvação não é um possibilidade real para ninguém. Esta iluminação é livremente outorgada somente a alguns.’[14]

Contudo, precisamente por ser especificamente cristã, a resposta de Wainwright é incoerente com sua explicação em termos do atraso espiritual das culturas primitivas. De acordo com as explicações especificamente cristãs, Deus concede a graça salvífica aos cristãos, não aos seguidores do Judaísmo ou do Islamismo, apesar do fato de as duas últimas religiões teístas serem tão espiritualmente sofisticadas quanto o cristianismo. Wainwright invoca o atraso  de uma cultura para explicar a ausência da crença em Deus entre seus membros, mas então ele explica a distribuição irregular da sofisticação espiritual de uma maneira que falha em contemplar a crença genuína em Deus entre judeus e muçulmanos, adeptos do que ele reconhece serem religiões espiritualmente avançadas. De forma que sua explicação desanda.

Howard-Snyder e Moser concluem sua discussão sobre as respostas da categoria 2 lançando um desafio:
Nenhuma explicação isolada pode ser a explicação completa para o ocultamento divino… De forma que não basta objetar que uma explicação não é aplicável a determinados tipos de pessoas; tampouco objetar que cada explicação falha em ser aplicável a cada candidato a descrente inocente. Uma objeção a tais explicações deve invocar algo como a afirmação de que elas falham tanto em conjunto quanto individualmente em explicar o que consideramos a primeira vista descrença inocente. Aqui se levanta um problema tipicamente epistêmico  para os proponentes do argumento do ocultamento. Os humanos são seres de uma complexidade enorme, e não é uma tarefa fácil dizer se qualquer candidato em particular à descrença inocente possui ou fracassa em possuir as motivações, atitudes e disposições que supõe-se de boa fé explicar sua descrença inocente.[15]
A objeção demográfica refuta esse desafio. Porque abstrai a partir de casos individuais e considera a distribuição em larga escala da descrença, ela não precisa perguntar ‘se qualquer candidato em particular à descrença inocente possui ou falha em possuir as motivações, atitudes e disposições que supõe-se de boa-fé explicar a descrença inculpável’. Em vez disso, a objeção demográfica pressupõe plausivelmente que os padrões de larga escala observados resolve o problema das diferenças individuais em relação a quaisquer ‘motivações, atitudes e disposições’ invocadas pelas respostas das categorias 1 ou 2, tais como a estupidez, a insensibilidade, arrogância, presunção, suscetibilidade ao medo de punição, falta de arrependimento ou humildade, e e até mesmo a predestinação de alguém como não-eleito. A objeção pressupõe que os indivíduos com essas características não se aglomeram por país ou cultura de maneira a mostrar-se vinte vezes mais frequentes na Tailândia do que na Arábia Saudita. Assim, estas disposições assemelham-se a outras características humanas fundamentais, como a capacidade de ouvir e prestar atenção; apesar de diferenças marcantes entre indivíduos, não encontramos países inteiros cuja população é quase toda surda. Finalmente, mesmo que deva ser o caso de que todos os que morrem na descrença inocente depois se tornem crentes, permanece inexplicada por que tão alta proporção daqueles precisando de conversão post-mortem pertença a determinados grupos culturais e não a outros: mesmo que a situação seja amenizada no fim, por que a distribuição da crença começa tão desigual e justo com o tipo de padrões que esperaríamos se somente forças naturais impessoais como a cultura e a política a estivessem impelindo?

Agora vamos para a terceira categoria de respostas, a qual, como sugeri anteriormente, ou nega que o problema da distribuição exista ou se recusa a explica-lo. Elas incluem (a) a alegação de que várias pessoas ‘implicitamente’ acreditam em Deus ainda que possa aparentar (mesmo a elas próprias) serem descrentes, e (b) a estratégia que pode ser rotulada como ‘teísmo cético’. Acerca de (a), Howard-Snyder e Moser escrevem o seguinte:
Outra sugestão é que todo ser humano pode acreditar em Deus implicitamente, apesar de não saber que é isto o que está fazendo. Isto pode ser feito buscando uma vida moral e assim se relacionando com Deus por intermédio da relação com seu atributo principal, a bondade. Alternativamente, alguém pode acreditar implicitamente ao agir como alguém agiria se acreditasse explicitamente nEle.[16]
A força da estratégia (a) para os propósitos atuais seria negar que a crença teísta seja distribuída desigualmente ao redor do globo como parece ser. Se a mera busca de uma vida moralmente boa torna alguém um crente em Deus (monoteísta, pessoal), então há um número muito maior de pessoas que acreditam que Deus exista do que os que admitiriam isso; alguns acreditam que Deus exista ao mesmo tempo em que explícita e sinceramente o negam; e alguns acreditam que Deus exista sem compreender a proposição na qual alegadamente acreditam. Estas consequências não somente levantam dúvidas sobre a afirmação de que a busca de uma vida moral torna alguém um teísta implícito. Elas também dificultam conceber como a mera crença implícita permite que alguém ‘aja como se’ fosse um crente explícito e declarado, uma vez que um indício comum (ainda que imperfeito) de que alguém sustenta explicitamente a crença numa proposição p é a resposta afirmativa que esta pessoa fornece quando lhe é perguntado ‘Você acredita em p?’. Em tais casos, os crentes implícitos poderiam agir como explícitos somente respondendo insinceramente.

Em vez disso, talvez a resposta da ‘crença implícita’ pretenda sugerir que qualquer um que busque uma vida moral esteja comprometido, ainda que as vezes apenas de maneira implícita, com a existência de Deus. Sugestões deste tipo aparecem em Kant, para quem a busca coerente de uma vida moral exige a ‘postulação prática’ tanto de Deus quanto da imortalidade da alma, e em versões do argumento moral, como o de C. S. Lewis, que raciocina a partir da existência de um senso moral interno para a existência de um legislador moral externo. Estas sugestões sobre os pressupostos ou as implicações da busca de uma vida moral são controversas, mas mesmo assim são mais plausíveis do que a idéia de que quem quer que busque uma vida moral automaticamente acredita em Deus em algum sentido de ‘acredita’. Além disso, mesmo se admitirmos a alegação controversa adicional de que, em termos dos objetivos de Deus, a crença implícita é um substituto adequado e satisfatório para a crença explícita, permanece misteriosa a razão pela qual Deus exige que populações inteiras de alguns países convivam com o substituto enquanto as populações de outros países desfrutem do artigo genuíno. Finalmente, se da perspectiva de Deus a crença implícita não é meramente um substituto adequado mas tão boa quanto a crença explícita, fica difícil explicar a exaltação encontrada nas Escrituras da crença explícita e a condenação de sua ausência referida anteriormente.

A julgar pelo esforço filosófico empreendido em sua defesa, a estratégia (b) é uma réplica de importância crescente às versões ‘evidencialistas’ (ou ‘empíricas’) do argumento do mal, e é flexível o bastante para ser dirigida contra outros argumentos empíricos como o AOD. Em resposta ao argumento do mal, o teísmo cético concede à ateologia que nenhuma teodicéia conhecida funciona: nenhuma explica adequadamente — nenhuma oferece razões moralmente suficientes para — a permissão por parte de Deus para a ocorrência de sofrimento na quantidade e variedade encontrada em nosso mundo. Mas o teísmo cético insiste que o fracasso de todas as nossas teodicéias é previsível. De acordo com o teísmo cético, tanto teístas quanto ateus deveriam aceitar a afirmação condicional ‘Se Deus existe, então as razões moralmente suficientes para permitir o sofrimento podem muito bem estar fora de nosso horizonte cognitivo’, considerando-se o quão débeis nossas mentes são em comparação com a mente divina. Assim, da mesma maneira, em relação às razões de Deus para permitir a drescrença, como Howard-Snyder e Moser assinalam:
Alguém pode reconhecer que Deus não torna a si próprio suficientemente cognoscível (especialmente aos descrentes inocentes) e admitir que desconhecemos qualquer boa explicação sobre porque Ele agiria assim. Talvez exista alguma razão que nós não conhecemos. De fato, quando lidamos com os propósitos envolvidos na permissão divina para algum estado de coisas (ruim), esta parece ser uma opção plausível, não somente uma possibilidade remota. Obviamente, não deveríamos ficar surpresos se fossêmos incapazes de explicar Deus não sendo mais nítido e inequívoco sobre sua existência[17].
Que podemos dizer sobre uma resposta que se recusa a  explicar os dados, além de objetar que ela se recusa a explicar os dados? O teísmo cético, de modo bastante evidente, posiciona-se de maneira bastante pessimista e sombria acerca da capacidade humana para discernir razões moralmente profundas para permitir o sofriment0 e a descrença, e alguns de seus críticos o acusam de sucumbir ao ceticismo sobre a moralidade em geral, incluindo o status moral de ações humanas indiscutivelmente imorais[18]. Outros críticos do teísmo cético o acusam de incitar não somente o ceticismo moral como também o ceticismo global[19]. Um tratamento apropriado destes temas complexos vai muito além do escopo deste artigo, mas quer tais críticas ao teísmo cético triunfem ou não, fica claro que tal postura — por um vício intrínseco — deixa a distribuição demográfica do teísmo totalmente inexplicada. Os teístas céticos fingem explicar o fracasso de todas as explicações teístas da demografia, mas para meus objetivos é suficiente que eles reconheçam o fracasso em primeiro lugar.

O sensus divinitatis

Alguns filósofos na tradição reformada asseveram que todos os seres humanos normais possuem uma faculdade inata projetada para produzir a crença em Deus, uma afirmação que eles alegam encontrar esboçada por Calvino:

Que existe na mente humana e na verdade por um instinto natural, algum sentido da Divindade [sensus divinitatis], é algo que  consideramos livre de controvérsias, uma vez que o próprio Deus, para impedir qualquer ser humano de fingir ignorância, tenha dotado todos os homens com alguma idéia de sua divindade… … esta não é uma doutrina aprendida pela primeira vez na escola, mas uma em relação a qual cada homem é, desde o ventre materno, seu próprio senhor; uma doutrina cuja própria natureza não permite que nenhum indivíduo dela se esqueça.[20]

Esta faculdade, contudo, é frágil, e a pecaminosidade humana facilmente emperra seu funcionamento adequado, como Mark Talbot explica: ‘Deus, então, segundo Calvino, fez com que nos fosse natural acreditar nele. O pecado  provoca a degeneração destas inclinações naturais até que elas deixem de ser espiritualmente frutíferas… Apenas seres humanos purificados do pecado a alcança [a crença genuína em Deus]; nenhum de nós a terá até que sejamos regenerados.[21]

A demografia do teísmo, eu afirmo, torna improvável a existência de qualquer faculdade humana inata deste tipo, por mais corruptível que ela seja quando exposta à pecaminosidade. Faculdades humans inatas, como ouvir e prestar atenção, ou a capacidade de aprender uma linguagem falada, tendem a ser distribuídas de maneira uniforme pelos tipos humanos. Mais uma vez, entretanto, o tipo de crença em Deus para o qual esta faculdade alegadamente inata é projetada para produzir é distribuída de maneira bastante irregular  entre as sociedades humanas. Seus defensores irão objetar que o pecado original  impede a faculdade de realizar sua finalidade e que somente a graça regenerativa de Deus pode restaurar a faculdade às suas boas condições de funcionamento. Mas esta réplica somente faz a pergunta retroceder um nível: por que teria Deus outorgado sua graça regenerativa de maneira tão desigual, contribuindo para um padrão de descrença que, coincidentemente, os cientistas sociais afirmam poder explicar somente em termos culturais?

Todos os autodenominados ‘epistemólogos reformados’ muitas vezes aludem ao sensus divinitatis para defender as credenciais epistêmicas da crença teísta contra o desafio colocado pelo evidencialismo, a visão de que a crença teísta é justificada somente quando baseada em evidências suficientes. Como Stephen J. Wykstra escreve,
Sem sombra de dúvida, tal evidencialismo é razoável a respeito de coisas como elétrons. Mas isto porque não possuímos nenhum acesso não-inferencial aos elétrons (não podemos simplesmente percebe-los); por isso a crença em elétrons precisa de suporte inferencial a partir de coisas que podemos perceber. Mas por que deveríamos supor que os humanos não possuem nenhum acesso não-inferencial a Deus? As religiões teístas tradicionais ensinam, afinal, que Deus nos fez com a faculdade — que Calvino chama de Sensus Divinitatis — através da qual podemos, sob condições apropriadas, ‘sentir’ a presença, o caráter e a ação de Deus em nossas vidas.[22]
Na medida em que os dados demográficos lançam dúvidas sobre a existência de tal faculdade inata em seres humanos, eles também enfraquecem esta defesa particular da crença teísta.

O ocultamento e o mal
Uma objeção por vezes levantada contra o AOD declara que ele não acrescenta nada ao mais conhecido e popular argumento do mal. Afinal, não seria o fato de Deus se esconder de alguns dentre aqueles que sincera e zelosamente o procuram apenas outra forma de sofrimento do tipo que os ateólogos afirmam que não deveríamos esperar ver se Deus existisse? Jonathan Kvanvig apresenta uma formulação vigorosa desta objeção do tipo ‘nenhuma novidade’. Segundo Kvanvig, o AOD aprimora o argumento do mal se, e somente se, o AOD evita pelo menos algumas das refutações — que ele chama ‘invalidadores delimitantes’ — que confrontam o argumento do mal:
… é difícil divisar que força empírica poderia ser acrescentada pelo problema do ocultamento. Este problema poderia fazer a balança pender em favor do ateísmo se os invalidadores delimitantes para o problema do mal falhassem em delimitar as implicações do ocultamento divino. Desta maneira, o ocultamento constituiria um tipo de problema para o teísmo diferente do usual problema do sofrimento… Ninguém demonstrou isso, e é difícil ver como tal argumento poderia ser bem-sucedido. Se considerarmos os candidatos plausíveis para tais invalidadores delimitantes… não há nenhuma razão em particular para pensar que tais respostas triunfariam somente para o problema do mal comum mas não para o problema específico do ocultamento divino[23].
Dentre os ‘invalidadores delimitantes’ típicos para o problema do mal Kvanvig inclui a ‘necessidade [do mal] para um bem maior [especificado], o aprimoramento da alma, a importância da liberdade, ou simplesmente o fato de que não sabermos quais são todas as coias boas’[24]. Pelo último ítem nesta lista eu suponho que Kvanvig pretenda se referir à resposta teísta cética, que eu descrevi como recusando-se a considerar seriamente os problemas do mal e do ocultamento divino. Os outros três itens na lista contam como respostas sérias, mas demonstrarei que Kvanvig está enganado em afirmar que elas neutralizam o AOD tanto quanto efetivamente neutralizam o argumento do mal. Por mais eficazes que elas possam ser em desarticular o argumento do mal, elas deixam o AOD incólume.

Kvanvig não está sendo completamente honesto ao sugerir que ‘ninguém demonstrou’ que o AOD e o argumento do mal diferem de maneira crucial, se não ao menos em categoria[25]. Theodore M. Drange, por exemplo, menciona vários aspectos nos quais o ‘argumento da descrença’ (seu rótulo para o AOD) representa um grande progresso em relação ao problema do mal, incluindo o seguinte. Primeiro, a evidências das Escrituras, particularmente do Novo Testamento, estabelece que Deus  deseja que o seres humanos acreditem em e amem a Deus mais claramente do que estabelece o desejo de Deus em reduzir ou eliminar o sofrimento humano ou animal. Segundo, eliminar a descrença parece uma meta mais fácil de alcançar num mundo governado por leis naturais do que a eliminação do sofrimento em tal mundo. Terceiro, o AOD evita a ‘objeção regressiva’ que confronta o argumento do mal: ‘se Deus fosse reduzindo a quantidade de sofrimento no mundo num esforço para deixar seus habitantes satisfeitos, em que ponto deveriam eles dizer, “Chega, estamos maximamente felizes agora”?’[26] Indiscutivelmente, qualquer universo regido por leis ideal contendo seres como nós irá conter algum grau de sofrimento inevitável no mínimo em decorrência das regularidades naturais; torna-se difícil especificar, ou mesmo conceber, o grau mínimo ideal. Tal não é o caso, afirma Drange, quando a eliminação da descrença é discutida: aqui o mínimo ideal – zero – é fácil de especificar, e assim torna-se mais seguro concluir que nosso mundo não contém o grau ideal de descrença do que concluir que ele não contém o grau ideal de sofrimento.

De qualquer maneira, não é de meu conhecimento que alguém tenha argumentado em favor da superioridade do AOD em relação ao argumento do mal baseado em fundamentos demográficos. A diferença-chave, eu sugiro, entre o sofrimento e a descrença em Deus é que o sofrimento é muito mais bem distribuído do que a descrença. De fato, algumas pesquisas psicológicas sugerem que o sofrimento do tipo moralmente relevante — isto é, a experiência subjetiva do sofrimento, é, na verdade, distribuído de maneira bastante uniforme ao redor do globo, apesar das aparências iniciais em contrário[27]. Ainda que esta tese estritamente igualitária seja muito insensível para ser aceitável, certamente permanece verdadeiro que a soma total de sofrimento é mais uniformemente distribuída ao redor do globo do que a descrença em Deus. Esta alegação obtem credibilidade adicional se levarmos em consideração o sofrimento animal, uma vez que há razões para pensar que a pecuária industrial eleva enormemente o sofrimento total experimentado pelos animais somente naqueles lugares onde decresce o sofrimento advindo da experiência da fome. O sofrimento não respeita a geografia da maneira que a descrença o faz. Não temos nenhuma razão para pensar que os habitantes da Tailândia experimentam vinte vezes o sofrimento experimentado pelos habitantes da Arabia Saudita, mas eles exibem um índice de descrença no Deus monoteísta vinte vezes superior.

Esta diferença é importante. Considere as três teodicéias genuínas que Kvanvig menciona: um bem maior específico, o aperfeiçoamento da alma e a liberdade. Uma hipótese que tente explicar o sofrimento em nosso mundo como necessário para produzir um bem alegadamente compensatório, tal como a compaixão, tem uma possibilidade de funcionar porque a hipótese é compatível com a distribuição de sofrimento observada. Indiscutivelmente, tal hipótese prevê uniformidade na distribuição do sofrimento: a compaixão é uma coisa boa onde quer que ocorra, e assim deveríamos esperar uniformidade universal no sofrimento do qual apenas a verdadeira compaixão se origina. De maneira similar para o aprimoramento da alma: o autodesenvolvimento moral e crescimento espiritual arduamente conquistado em geral são considerados valiosos pelas pelas pessoas, de maneira que o sofrimento que Deus consente como um gatilho que desencadeia esses processos deve ser difundido universalmente de modo uniforme, e indiscutivelmente o é. A teodicéia da liberdade também prevê a distribuição uniforme do sofrimento, sob a pressuposição plausível de que a possibilidade de fazer escolhas livres do tipo que produzem o sofrimento é uma faculdade humana uniformemente distribuída, não um privilégio especial de habitantes de algumas partes do planeta. Em contraste, a descrença em Deus pode ser qualquer coisa menos uniformemente distribuída pelo planeta, e consequentemente qualquer explicação puramente em termos de características, tal como a liberdade humana, que é uniformemente distribuída, não irá funcionar. Para usar a expressão de Kvanvig, os ‘invalidadores delimitantes’ para o problema do sofrimento falham em invalidar o AOD porque eles são aplicáveis apenas a características que, pelo menos de perspectiva panorâmica, são uniformemente distribuídas entre a população humana, e a descrença não é uma dessas características.[28]

Notas do autor
1. Um problema similar pode surgir da distribuição irregular da crença teísta ao longo do tempo, uma vez que, especialmente quando comparada às explicações naturalistas, nenhuma das explicações teístas da descrença inocente ou culpável (veja a seção ‘Respostas ao AOD’ abaixo) explica porque a incidência global da crença teísta variou dramaticamente durante a existência da espécie humana. Em favor da simplicidade, contudo, e porque os dados atuais são mais prováveis de serem confiáveis do que os dados históricos, concentrar-me-ei na distribuição geográfica atual da crença teísta. Historiadores e cientistas sociais tem, é claro, oferecido várias explicaçõs naturalistas para a emergência e o estabelecimento das mundivisões teístas e não-teístas; para referências à literatura recente, veja a bibliografia em God Against the Gods : the History of the War between Monotheism and Polytheism, de Jonathan Kirsch (New York NY: Penguin, 2004).

2. Um dos principais proponentes contemporâneos da primeira versão do AOD é J. L. Schellenberg, cujas contribuições incluem Divine Hiddenness and Human Reason (Ithaca NY: Cornell University Press, 1993) ; ‘Response to Howard-Snyder’, Canadian Journal of Philosophy, 26 (1996), 455–462; ‘What the hiddenness of God reveals: a collaborative discussion’, em Daniel Howard-Snyder e Paul K. Moser (editores) Divine Hiddenness : New Essays (Cambridge: Cambridge University Press, 2002), hereafter DHNE, 33–61 ; e ‘Divine hiddenness justifies atheism’, in Michael L. Peterson and Raymond J. VanArragon (editoress) Contemporary Debates in Philosophy of Religion (Malden MA: Blackwell Publishing, 2004), 30–41.

3. Um dos principais proponentes contemporâneos da segunda versão do AOD é Theodore M. Drange, que chamou o AOD de ‘Argumento da Descrença’. Suas contribuições incluem ‘‘The argument from non-belief ’, Religious Studies, 29 (1993), 417–432; ‘Nonbelief vs lack of evidence: two atheological arguments’, Philo, 1 (1998), 105–114; Nonbelief and Evil : Two Arguments for the Nonexistence of God (Amherst NY: Prometheus Books, 1998) ; and ‘McHugh’s expectations dashed’, Philo, 5 (2002), 242–248.

4. Drange Nonbelief and Evil, 59–60.

5. Eu digo ‘supostamente’ porque não é claro que qualquer versão possa, sem apelar à natureza amorosa de Deus, refutar a seguinte explicação calvinista a partir da predestinação: a razão pela qual existam tantos descrentes excluídos de uma relação pessoal com Deus é que Deus não deseja se relacionar pessoalmente com todos os seres humanos ou que todos os seres humanos acreditem em Deus; por razões inescrutáveis. Deus predestinou alguns seres humanos à salvação e o resto à danação. Num debate pela internet com  Douglas Wilson, Drange considera e rejeita esta explicação, em parte por razões bíblicas mas também devido às pressuposições sobre a natureza de Deus: ‘Em geral, Wilson deveria esclarecer seu ponto de vista em relação a Deus e os não-cristãos. Estarão todos eles realmente condenados? E é realmente verdade que Deus os predestinou à danação antes mesmo que eles nascessem? Por que Ele faria tal coisa? E como foi que ele selecionou tão poucos para serem salvos e tantos para a danação?  Ele mais me parece uma divindade desprezível do que o Deus maximamente excelente do Cristianismo sobre o qual ouvi muitas vezes. Veja http://www.infidels.org/library/modern/theodore_drange/drange-wilson/drange3.html.

6. John Calvin Institutes of the Christian Religion (I, iii, 1), Henry Beveridge (tr.) (Edinburgh: Calvin Translation Society, 1845–1846).

7. Compare os dados etnográficos citados por Locke em seu Ensaio acerca do entendimento humano (1690), 1, iii, 8 (‘A idéia de Deus não é inata’)


9. Introduction: the hiddenness of God’, DHNE, 12, aludindo ao artigo de Schellenberg ‘What the hiddenness of God reveals’, DHNE, 52. Drange alude à disparidade nas páginas 138 e 141 de Nonbelief and Evil e mais uma vez em seu debate na internet com Wilson (veja a nota 5), mas ele não desenvolve as consequências da disparidade para as explicações típicas para o ocultamento divino.

10. Ambas as citações de Edwards aparecem no artigo de William J. Wainwright ‘Jonathan Edwards and the hiddenness of God’, DHNE, 102, 103.

11. As explicações de 1 até 6 são citadas palavra por palavra de DHNE, 9-19; a explicação 7 é minha paráfrase do último item em sua lista, DHNE, 10.

12. De acordo com Kai Nielsen, ‘Numa recente pesquisa realizada nos Estados Unidos, 88 por cento da população (se a amostra considerada era representativa) sustentaram que nunca tiveram qualquer dúvida sobre a existência de Deus’; Naturalism and Religion (Amherst NY: Prometheus Books, 2001), 14. Infelizmente, Nielsen omite a fonte de sua estatística.

13. Wainwright ‘ Jonathan Edwards and the hiddenness of God’, 114.

14. Ibid., 113.

15. Introduction: the hiddenness of God’, DHNE, 10–11.

16. Ibid., 9, ênfase no original.

17. Ibid., 11, ênfase no original.

18. Veja, por exemplo, o artigo de Michael J. Almeira e Graham Oppy ‘Sceptical theism and evidential arguments from evil’, publicado no Australasian Journal of Philosophy 81 (2003), 496–516, respondido no artigo de Michael Bergmann e Michael Rea ‘ In defence of sceptical theism: a reply to Almeida and Oppy’, Australasian Journal of Philosophy 83 (2005), 241–251.

19. Veja Bruce Russell ‘Defenseless’, em coletânea editada por Daniel Howard-Snyder The Evidential Argument from Evil (Bloomington IN: Indiana University Press, 1996), 193–205; e na mesma obra  ‘The problem of evil : why is there so much suffering?’, na coletânea editada por Louis P. Pojman Introduction to Philosophy: Classical and Contemporary Readings (New York NY: Oxford University Press, 2004), 207–213.

20. Calvin Institutes, I, iii, 1 ; I, iii, 3.

21. Mark Talbot ‘Is it natural to believe in God?’, Faith and Philosophy, 6 (1989): 155–171, 159.

22. Stephen J. Wykstra ‘Toward a sensible evidentialism: on the notion of ‘‘needing evidence’’ ’, na coletânea editada por William L. Rowe e William J. Wainwright Philosophy of Religion: Selected Readings, 2nd edn (New York NY: Harcourt Brace Jovanovich, 1989), 426–437, 434.

23. Jonathan L. Kvanvig ‘Divine hiddenness: what is the problem?’, DHNE, 161–162.

24. Ibid., 161.

25. Peter van Inwagen argumenta a favor da diferença em ‘What is the problem of the hiddenness of God?’, DHNE, 24–32, um artigo original publicado no mesmo volume que Kvanvig; Kvanvig talvez ignorasse o conteúdo do artigo de van Inwagen.

26. Drange Nonbelief and Evil, 288. Todas as três vantagens do AOD listadas aqui são discutidas nas páginas 286–291.

27. Veja E. Diener, E. M. Suh, R. M. Lucas, e H. L. Smith ‘Subjective well-being: three decades of progress’, Psychological Bulletin, 125 (1999), 276–302, citado em Ronald de Sousa, ‘Paradoxes of happiness’, disponível em http://www.chass.utoronto.ca/%7Esousa/happinew.pdf.

28. Pelos comentários prestimosos, agradeço a Andrew Graham, aos membros do grupo Philosophy and Public Affairs da Acadia University, minha audiência na conferência anual da Atlantic Region Philosophers Association, e a um resenhista anônimo deste periódico.

Nota do Tradutor: Era Axial, expressão cunhada por Karl Jaspers para descrever o período que vai de 800 a.C. a 200 a.C. durante o qual, segundo Jaspers, sistemas de pensamentos revolucionários similares surgiram na China, na Índia e no Ocidente.

Comentário(s)

Fique a vontade para comentar em nosso artigo!

Todos os comentários serão moderados e aprovados, portanto pedimos que tenham paciência caso seu comentário demore para ser aprovado. Seu comentário só será reprovado se for depreciativo ou conter spam.

Você pode comentar usando sua conta do Google ou com nome+URL.

Postagem Anterior Próxima Postagem