Autor: Hector Avalos
Tradução: Gilmar Santos, publicado originalmente no Rebeldia Metafísica


No que diz respeito ao público em geral, nada sustenta mais a relevância da Bíblia do que as traduções. De acordo com uma estimativa, por volta do ano 2000 a Bíblia havia sido traduzida para mais de dois mil idiomas.[12] Se não fosse pelas traduções que tornaram a Bíblia acessível a milhões de pessoas ao longo dos séculos, ela provavelmente já teria sido esquecida.

Efetivamente, a Bíblia é um texto a tal ponto bárbaro que os tradutores e especialistas tornam-se assistentes do leitor. O prefácio da New Century Bible diz: “Os costumes antigos são muitas vezes estranhos para os leitores atuais… de modo que esclarecimentos são apresentados no texto ou em notas de rodapé.”[13] Mas ainda mais surpreendente é o reconhecimento de que a relevância da Bíblia é melhor mantida usando a tradução para ocultar e distorcer o sentido original do texto a fim de proporcionar a ilusão de que a informação e os valores comunicados pelos autores bíblicos são compatíveis com os do mundo contemporâneo.[14]

Há casos nítidos em que os tradutores deveriam saber que a tradução não corresponde ao que realmente se encontra nos textos bíblicos sendo traduzidos. Isto também pode significar que palavras significativas são omitidas ou acrescentadas, não apenas traduzidas erroneamente. Resumindo, as traduções da Bíblia “mentem” para manter a Bíblia viva.

De acordo com a eticista Sissela Bok, uma mentira é “uma mensagem intencionalmente deceptiva na forma de um enunciado.”[15]Podemos dizer que as traduções da Bíblia mentem quando distorcem o que efetivamente consta num texto fundamental. Comentando sobre estudantes que perguntam por que eles são muitas vezes privados de todas as passagens violentas e objetáveis da Bíblia, Michael Coogan responde, “Em parte, a resposta é que não seria seguro para eles [os estudantes] lerem a Bíblia. Trata-se de uma coleção de livros perigosa, até mesmo subversiva.”[16] Embora as traduções da Bíblia não mintam em cada versículo, os tradutores distorcem passagens das escrituras que eles julgam carregar sentidos que podem ser considerados censuráveis. De um modo geral, os tradutores sabem que a Bíblia é o produto de culturas cujos modos de vida e pensamento eram muito diferentes do nosso. Em alguns casos, a filosofia da Bíblia é tão bárbara e violenta que desafia as explicações de por que qualquer um a consideraria sagrada.[17] Deixem-me oferecer apenas três exemplos.

Exemplo 1: Politeísmo Politicamente Correto
Nosso primeiro exemplo lida com o politeísmo, que a maioria dos leitores cristãos desprezaria como idolatria. A maior parte dos leitores atuais provavelmente espera que a Bíblia não sancione o politeísmo. Considere a seguinte tradução de Deuteronômio 32:8-9 na New American Bible (NAB), uma tradução católica:
Quando o Altíssimo dividia os povos e dispersava os filhos dos homens, fixou limites aos povos, segundo o número dos filhos de Deus. Entretanto, a parte do Senhor era o seu povo, Jacó, a porção de sua herança.
Passará despercebido à maioria dos leitores o fato de que aqui “o Altíssimo” e “Senhor” são dois deuses diferentes, em meio a vários outros deuses. O termo traduzido como “o Altíssimo” é provavelmente o nome de um deus, pronunciado como Elyon, e o termo traduzido como “Senhor” corresponde ao nome hebraico que pronunciamos como Javé, o deus principal do antigo Israel. Há evidências de que eles eram reconhecidos como dois deuses diferentes nas culturas adjacentes, de modo que alguns especialistas defendem que nesta passagem “o Altíssimo” provavelmente se refere ao deus “Elyon”, que é representado aqui como superior a e distinto de Javé. Javé parece ser o filho de Elyon. Elyon dividiu a Terra, e o filho de Elyon, Javé (Senhor), recebeu a porção da Terra que veio a ser conhecida como Israel.[18]

O caso mais óbvio de politeísmo é a referência ao que a NAB traduz como “os filhos de Deus”. Na maioria dos panteões do Oriente Próximo antigo, acreditava-se que os deuses possuíam pais e mães divinos. Os Manuscritos do Mar Morto, que são os mais antigos manuscritos da Bíblia Hebraica, ainda preservam a (provavelmente mais antiga) leitura de “filhos de El” ou “filhos de Elohim”. Os “filhos de El” seriam os deuses gerados pelo deus chamado El. O fato de que os editores antigos reconheceram a natureza politeísta desta expressão (“filhos de El”) provavelmente levou os editores do texto padrão (chamado de texto massorético) da Bíblia hebraica a mudar “deuses” por “filhos de Israel”. Algumas traduções gregas tem “anjos de Deus” em vez de “filhos de El” ou “deuses”.[19]

A New Revised Standard Version (NRSV), uma tradução norte-americana multidenominacional, realmente adota a expressão politeísta mais original, “segundo o número de deuses”, refletida nos Manuscritos do Mar Morto. Entretanto, outras traduções modernas ainda não refletem plenamente o politeísmo da passagem. Observem os seguintes exemplos retirados da Revised English Bible (REB), uma versão ecumênica britânica, e a New Jerusalem Bible (NJB), uma tradução católica britânica:

REB: “segundo o número dos filhos (sons) de Deus”

NJB: “segundo o número dos filhos (children) de Deus”

Observem que a NJB exibe uma tradução neutra em relação ao gênero (children) em vez de “sons”, mais apropriado do ponto de vista cultural, que eram os principais herdeiros da terra nas culturas bíblicas. A correção política na NJB, por conseguinte, também obscurece a natureza patriarcal da transmissão de patrimônio na Bíblia.

Tais distorções não se restringem ao Antigo testamento. O Cristianismo muitas vezes se autopromove como mais inclusivo e compassivo do que a religião do Antigo Testamento e o Judaísmo. Entretanto, isto demanda a utilização de traduções errôneas para ocultar ou suprimir algumas das mais irreconciliáveis descontinuidades entre o que Jesus ensinou e o que as versões correntes do Cristianismo desejam que seu público pense que Jesus ensinou.

Exemplo 2: Aprovação da Mutilação Genital
A Contemporary English Version (CEV) torna mais palatável a aparente aprovação de Jesus à mutilação genital com esta tradução de Mateus 19:12:
Algumas pessoas são incapazes de contrair matrimônio devido a defeitos de nascença ou em virtude do que alguém fez a seus corpos. Outros permanecem solteiros por amor ao reino dos céus. Quem puder aceitar este ensinamento deveria faze-lo.
Compare esta tradução com a da mais antiga Revised Standard Version:
Alguns são eunucos porque nasceram assim; outros foram feitos assim pelos homens; outros ainda se fizeram eunucos por causa do Reino dos céus. Quem puder aceitar isso, aceite.
Em outras palavras, a RSV transmite com muito mais precisão a ideia de que as pessoas podem tornar-se a si próprias eunucos, o que pode envolver literalmente a castração, por amor ao Reino dos Céus. Jesus não aparenta levantar nenhuma objeção e, de fato, suas palavras podem ser interpretadas como uma aprovação à ideia de automutilação. Que esta passagem possa ser compreendida assim é demonstrado pelo relato de que Orígenes, o célebre Pai da Igreja, castrou-se à luz deste versículo.[20]

A tradução “permanecer solteiro” parece mais problemática à luz de como a CEV é descrita por seus proponentes: “A CEV não é uma paráfrase. É uma tradução precisa e fidedigna dos manuscritos originais”[21] E no entanto, comentando sobre a expressão “permanecer solteiro” da CEV, Stanley Porter, o estudioso do Novo Testamento, observou: “Seria possível, à luz do caráter escancaradamente evangelístico da CEV, que algumas passagens do Novo Testamento tenham sido atenuadas de modo a não escandalizar aqueles atraídos para o Cristianismo?”[22]

Exemplo 3: Antissemitismo
O Holocausto gerou, muito apropriadamente, uma avalanche de análises autocríticas da parte de vários cristãos. Alguns acadêmicos cristãos reconheceram o antijudaísmo em sua história, enquanto outros afirmaram que qualquer antijudaísmo resulta da compreensão equivocada de passagens cruciais.[23] Mas um dos métodos utilizados para reparar a longa história do antijudaísmo cristão concentra-se em ocultar as passagens antijudaicas do Novo Testamento.[24] Segundo o que propõe Irvin J. Borowsky em Removing the Anti-Judaism from the New Testament:
Para remover esta hostilidade, a solução adotada pelas sociedades bíblicas e editoras religiosas foi produzir duas edições, uma para o grande público, semelhante à Contemporary English Version, que reduz significativamente este potencial antijudaico, e a outra edição para os acadêmicos, fiel ao texto grego.[25]
O duplipensamento orwelliano não poderia ser celebrado com mais fervor. A proposta é paternalista porque assume que os leitores precisam ser protegidos de sua própria Bíblia. Borowsky acrescenta, “As apostas são altas. Pessoas morreram e ainda morrem por causa destas palavras.”[26] Tentativas similares e não menos satisfatórias de abordar o antijudaísmo também foram esboçadas por Norman A. Beck, um teólogo bíblico luterano.[27] Tais esforços somente expoem o fato de que os próprios acadêmicos sabem que “a Bíblia” é um documento violento que deve ser sanitizado para se manter vivo.

Notas:
12. Philip C. Stine, Let the Words Be Written: The Lasting Influence of Eugene Nida (Atlanta: Society of Biblical Literature, 2004), 182.

13. Citado em Leland Ryken, The Word of God in English: Criteria for Excellence in Bible Translation (Wheaton, IL: Crossway, 2002), 73.

14. Para demonstrações e discussões adicionais sobre este ponto, veja Hector Avalos, End of Biblical Studies, 37–64.

15. Sissela Bok, Lying: Moral Choice in Public and Private Life (New York: Vintage Books, 1999), 15.

16. Coogan, “The Great Gulf between Scholars and the Pew,” 8.

17. Para o aspecto violento da Bíblia, veja, Hector Avalos, Fighting Words: The Origins of Religious Violence (Amherst, NY: Prometheus Books, 2005).

18. Para uma discussão completa das evidências e do corpo de conhecimentos sobre este ponto, veja Avalos, End of Biblical Studies, 43–44.

19. Para as técnicas gerais utilizadas pelas antigas versões gregas, veja John A. Beck, Translators as Storytellers: A Study in Septuagint Translation Technique (New York: Peter Lang, 2000).

20. A história encontra-se em Eusebius, Ecclesiastical History, trad. J. E. L. Oulton (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1980), 6.8.1–3. Eusebius atribui os atos de Orígenes à sua juventude e imaturidade, mas ele também  diz que outro cristão chamado Demetrius aprovou o ato sincero de Orígenes. Sobre a castração no Cristianismo primitivo, veja Mathew Kuefler, The Manly Eunuch: Masculinity, Gender Ambiguity, and Christian Ideology in Late Antiquity (Chicago: University of Chicago Press, 2001).

21. Veja Bible Gateway, “Contemporary English Version,” http://www.bibkgateway.com/versions/?action=getVersionInfo&vid=46.

22. Stanley Porter, “The Contemporary English Version,” em Translating the Bible: Problems and Prospects, ed. Stanley Porter and Richard Hess (London: T&T Clark, 1999), 39.

23. Algumas das obras clássicas sobre esta questão incluem Charlotte Klein, Anti-Judaism in Christian Theology, trad. Edward Quinn (Philadelphia: Fortress, 1978); John G. Gager, The Origins of Anti-Semitism: Attitudes toward Judaism in Paganism and Christian Antiquity (New York: Oxford, 1983); Rosemary R. Ruether, Faith and Fratricide: The Theological Roots of Anti-Semitism (New York: Seabury, 1979).

24. Howard Clark Kee e Irvin J. Borowsky, Removing the Anti-Judaism from the New Testament (Philadelphia: American Interfaith Institute/World Alliance, 2000); Norman A. Beck, Mature Christianity in the 21st Century: The Recognition and Repudiation of the Anti-Jewish Polemic in the New Testament (New York: Crossroad, 1994); Tikva Frymer-Kensky et al., Christianity in Jewish Terms (Boulder, CO: West-view, 2000).

25. Kee e Borowsky, Removing the Anti-Judaism, 18.

26. Ibid., 20.

27. Beck, Mature Christianity in the 21st Century, 323, concede que “a polêmica difamatória anti-judaica do Novo Testamento deve ser repudiada” mas as sugestões de Beck assemelham-se mais a manter as partes não-objetáveis do Mein Kampf.

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