Autor: Michael Martin
Tradução: Gilmar Santos, publicado originalmente na Rebeldia Metafísica

Os leitores deste periódico podem já ter ouvido falar dos argumentos cosmológico, teleológico e ontológico para a existência de Deus. Naturalmente, vários leitores conhecerão os problemas básicos com estes argumentos tradicionais e serão capazes de formular os seus próprios em debates contra teístas quando estes argumentos forem apresentados. Alguns leitores deste periódico também estarão familiarizados com outros argumentos para a existência de Deus e seus respectivos problemas: por exemplo, o argumento dos milagres e o argumento da experiência religiosa. Mas o que dizer sobre o Argumento Transcendental para a Existência de Deus (ATD) — o argumento segundo o qual a lógica, a ciência e os padrões éticos objetivos pressupõem a existência de Deus? É provável que poucos, se tanto, leitores tenham notícia deste argumento. De fato, é provável que nem mesmo a maioria dos crentes religiosos o conheça. Nem, até onde sei, foi este argumento criticamente avaliado na literatura padrão da filosofia da religião.

A ignorância sobre o ATD dificilmente surpreende uma vez que ele não desempenha nenhum papel na posição dos mais famosos apologistas contemporâneos [N.T.: William Craig o utilizou em seu debate contra Austin Dacey como resposta ao argumento ateológico do sucesso da ciência] e não recebe cobertura em artigos típicos de filosofia da religião. Na verdade, eu próprio o desconhecia quando publiquei um livro sobre o ateísmo no qual gastei centenas de páginas refutando os argumentos teístas (Martin 1990).

O ATD é utilizado por um pequeno grupo de apologistas cristãos operando dentro da tradição presbiteriana ortodoxa. De acordo com os recentes trabalhos de Greg Bahnsen (1976a, 1976b), seu principal defensor contemporâneo, as origens do ATD remontam às epístolas paulinas, mas o argumento possui suas raízes modernas na produção do mentor de Bahnsen, Cornelius Van Til (1955, 1969a, 1969b). O ATD também foi utilizado recentemente  por Douglas Jones em diálogos com Keith Parson e também comigo. (Jones, 1991, Parsons 1991, Martin 1991a). Bahnsen valeu-se quase que exclusivamente de variações do ATD em seu debate com o ateu Gordon Stein na Universidade da Califórnia, Irving em 1985 (Bahnsen-Stein) e num debate radiofônico na estação KKLA com o ateu George Smith (Bahnsen-Smith). Segundo o próprio Bahnsen ele planejava valer-se do ATD num debate comigo programado para ocorrer em Outubro de 1994 no Rhodes College em Memphis, Tennessee, mas que foi cancelado (Bahnsen, audiocassette #2) porque me recusei a permitir que o debate fosse registrado e vendido para angariar fundos para uma organização cristã. Bahnsen faleceu em 1995. Recentemente, publiquei um artigo (Martin, 1996) defendendo o oposto do ATD, isto é, que a lógica, a ciência e a ética pressupõem a inexistência de Deus. Eu batizei este argumento de Argumento Transcendental para a Inexistência de Deus (ATID). Este artigo foi republicado na Secular Web e estimulou um debate entre John Frame, um defensor do ATD e mim, e originou um diálogo entre Michael Butler, um discípulo de Bahnsen e mim. Se o ATD se tornará mais conhecido ainda não sabemos, mas em qualquer caso uma refutação é necessária, se por nenhuma outra razão, ao menos para municiar os descrentes para possíveis embates contra seus defensores.

Uma Visão Geral do ATD
A ideia básica por trás do ATD quando utilizado contra ateus é fácil de compreender e formular. Ele sustenta que certas coisas que os ateus presumem serem verdadeiras somente podem ser verdadeiras se existir um Deus. Basicamente estas pressuposições ateístas são as crenças de que o raciocínio lógico é possível, que a inferência científica é justificada, e que os padrões morais objetivos existem. De modo que se um ateu utiliza a lógica para refutar um argumento teísta, utiliza evidências científicas para desacreditar alguma posição bíblica, ou afirma que a onipotência e a perfeição moral de Deus são incompatíveis com o mal no mundo e consequentemente Deus não existe, o ATD afirma que ele ou ela está implicitamente assumindo a existência de Deus. A lógica e a ciência seriam impossíveis sem Deus, o defensor do ATD afirma, e o argumento a partir do mal pressupõe um padrão objetivo para o mal que também é impossível sem Deus.

Todavia, a maneira como o ATD foi utilizado na prática por Van Til, Bahnsen, Jones e Frame é mais específica em seu intento do que sugeri, pois estes pensadores desejam estabelecer não o teísmo per se mas o teísmo cristão. Consequentemente eles defendem que a lógica, a inferência científica e a ética objetiva pressupõem a cosmovisão cristã. Naturalmente, segundo eles, todas as religiões, do Hinduísmo ao Taoísmo, do Islã ao Budismo, são refutadas pelo ATD. Como todos estes posicionamentos religiosos valem-se da lógica, da ciência e dos padrões morais objetivos, todos eles pressupõem o Cristianismo.

Cristãos que utilizam o ATD reconhecem que não passam de uma minoria irrisória no mundo cristão. Seu status de minoria torna-se claro em termos dos tipos de Cristianismo que eles rejeitam. Van Til rejeitou o Catolicismo Romano, o Protestantismo liberal, na verdade qualquer ramo do Cristianismo que assume que o conhecimento e a razão humanas são independentes da autoridade revelada de Deus (Van Til 1955, capítulo 7). Bahnsen acompanhou Van Til sobre esta questão. Num levantamento histórico da apologética cristã ele afirmou que, com pouquíssimas exceções, os pensadores cristãos aceitaram equivocadamente a posição socrática de que o conhecimento e a razão humanas podem ser independentes de Deus (1976a). Naturalmente, às vezes Bahnsen aparentou sugerirr que Van Til foi o primeiro pensador cristão desde o apostólo Paulo a ver claramente que o conhecimento e a razão humana são completamente dependentes do Deus cristão (1976a, p232). Estivesse Bahnsen correto ou incorreto em sua avaliação de Van Til, sua avaliação indica claramente que ele acreditava que o número de defensores da versão do Cristianismo pressuposta pelo ATD foi relativamente pequeno.

A invalidade do ATD como uma prova do Cristianismo
Se Bahnsen está certo ao dizer que a lógica, a ciência e o raciocínio moral objetivo pressupõem a cosmovisão cristã do ATD, isto realmente mostra que a cosmovisão cristã — ou ao menos a cosmovisão cristã do ATD — é verdadeira? Não, não mostra.

Colocando o que Bahnsen quis dizer com “pressupõe” em termos por ele utilizados em diversas ocasiões: Dizer que A pressupõe B é dizer que não poderíamos “ver sentido” em  A sem presumir B. Entretanto, supondo que admitamos que deve-se presumir B para que A seja compreensível, não se segue que B é verdadeiro. Por exemplo, se estou tentando me comunicar com uma audiência falando-lhes em inglês, minhas ações não fazem sentido a menos que eles sejam capazes de entender o idioma inglês. Mas disso não se segue que eles realmente o sejam. Eles podem compreender apenas o idioma chinês. Cientistas ouvindo sinais de rádio do espaço sideral a fim de fazer contato com com formas de vida extraterrestres pressupõem que tais formas de vida sejam possíveis. Mas disso não se segue que necessariamente existam. De maneira similar, se, como Bahnsen afirmou, a cosmovisão cristã é pressuposta pela ciência, pela lógica e pela ética objetiva, disso não se segue que a cosmovisão cristã é verdadeira. Pode muito bem ser o caso que a ciência, a lógica e a ética sejam impossíveis e devam ser rejeitadas. O ATD não estabeleceria a veracidade da cosmovisão cristã mas somente a inconsistência dos ateus que pressupõem a ciência, a lógica e a ética objetiva.

Além disso, é claro que o ATD presume interpretações particulares da ciência, da lógica e da ética. Por exemplo, Bahnsen presumiu uma interpretação indutiva da ciência, uma concepção metafísica da lógica, e uma construção objetiva da ética de forma que qualquer negação da objetividade equivaleria a uma anarquia moral. Entretanto, outras interpretações da ciência, da lógica e da ética são possíveis. Igualmente, se o ATD for válido, a ciência, a lógica e a ética concebidas de outras maneiras não são automaticamente excluídas. Em particular, a ciência pode ser concebida de maneiras não-indutivas, por exemplo, como a apresentação de arrojadas teorias especulativas e suas refutações por rigorosos testes empíricos (Popper, 1959). A lógica concebida em termos metafísicos pode ser realmente problemática e pode ser melhor pensa-la em termos diferentes. Talvez, por exemplo, os princípios da lógica devam ser considerados como instrumentos. Todavia, assim interpretados eles não precisam ser arbitrários uma vez que são adotados tendo em vista objetivos específicos (Nagel, 1964). A ética objetiva pode ser impossível, mas isto não significa que a ética concebida de outras maneiras é impossível. Ademais, uma ética de base subjetiva não necessariamente implica a anarquia moral ou o niilismo pois os seres humanos podem ter boas razões prudenciais para criar sistemas morais com proibições contra o roubo, o assassinato e assim por diante (Mackie, 1977).

Resumindo, o ATD, mesmo se válido, não demonstra a veracidade do Cristianismo — muito menos da versão do Cristianismo pressuposta pelo ATD. Mas ele é válido? A lógica, a ciência e o raciocínio moral objetivo realmente pressupõem a cosmovisão cristã?

A indução e o ATD: Um Estudo de Caso
Existe, entretanto, um problema bloqueando o caminho de qualquer avaliação direta clara de sua validade. A fim de avaliar o ATD sistematicamente é necessário possuir uma formulação clara dele. Não fui capaz de encontrar uma. A bem da verdade, a conclusão do ATD é clara o suficiente. Contudo, não obstante Bahnsen em suas palestras tenha reiterado a conclusão do ATD, ele disse muito pouco sobre como ela foi alcançada.

Uma parte do ATD declara que a inferência indutiva – isto é, inferência probabilística na qual a conclusão é respaldada mas não tornada necessária pelas premissas — presume a existência do Deus cristão. Esta é a parte que considerarei no presente artigo. A parte do ATD sobre a inferência indutiva é um ponto de partida apropriado para uma crítica do ATD pois foi sobre ela que Bahnsen mais falou em suas palestras. Apesar da limitação de espaço me impedir de considerar os aspectos lógico e ético do ATD aqui, estes aspectos são discutidos numa extensão considerável em meu debate com Frame na Secular Web.

Ceticismo Indutivo e o ATD
Bahnsen argumentou que presumindo-se o Deus cristão a indução possui um fundamento sólido. Sem esta pressuposição, ele disse que estaríamos reduzidos ao ceticismo indutivo, a concepção de que não existe nenuma boa razão para utilizarmos a inferência indutiva e acreditar que a indução possui uma base racional. Uma vez que ele assumiu que toda a ciência é baseada na indução, ele consequentemente sustentou que a própria ciência pressupõe o Deus cristão, e que, sem Deus, a ciência carece de qualquer fundamentação racional. Assim, Bahnsen acusou os ateus que utilizam a ciência para argumentar contra o Cristianismo de pressuporem a veracidade da própria idéia que estão tentando refutar.

Ceticismo sobre o Ceticismo Indutivo
Apologistas cristãos como Bahnsen que recorrem ao ATD reconhecem seu débito para com David Hume, o cético escocês do século XVIII, e Bertrand Russell, um dos mais famosos filósofos do século XX. Ambos os pensadores levantaram questionamentos céticos sobre a indução. A estratégia de Bahnsen foi considera-las seriamente e então tentar mostrar que a crença no Deus cristão poderia dissipa-las. Infelizmente, ele não demonstrou o menor conhecimento sobre os argumentos filosóficos que desafiaram o ceticismo indutivo em geral e as versões de Hume e de Russell em particular.

No pensamento contemporâneo um argumento dedutivo válido é um argumento em que a conclusão decorre necessariamente das premissas. Por exemplo, “Fido tem quatro pernas” decorre necessariamente das premissas “Todos os cães tem quatro pernas” e “Fido é um cão”. Este é um argumento cujas premissas não podem ser verdadeiras e a conclusão falsa. Um argumento indutivo forte, por outro lado, é um argumento em que as premissas tornam a conclusão bastante provável mas não a tornam necessária. Assim, os argumentos indutivos são probabilísticos, não dedutivos. Por exemplo, a conclusão “O Sr. Lee tem olhos castanhos” é bastante provável em relação às premissas “Quase todos os chineses tem olhos castanhos” e “O Sr. Lee é chinês”. Este é um argumento cujas premissas podem ser verdadeiras e a conclusão falsa.

Os céticos indutivos sustentam que não existem argumentos indutivos fortes, mas vão além afirmando que nenhum argumento indutivo é mais forte do que qualquer outro. Consequentemente, eles afirmam não existir qualquer razão baseada em quaisquer evidências para preferir qualquer hipótese em detrimento de sua negação. Por exemplo, um cético indutivo sustentaria que não é mais provável que o sol se levante amanhã, baseado na experiência passada, que que ele não se levante. Este ceticismo indutivo é eventualmente afirmado dizendo que ou a indução não é justificada ou que não é racional utilizar a indução. Naturalmente, o cético indutivo reconheceria que se pudéssemos fazer certas pressuposições sobre o mundo – por exemplo, a pressuposição de que a natureza é uniforme — a indução seria justificada e seria racional utiliza-la. Mas estas pressuposições não podem ser feitas sem justificação. E, de acordo com os céticos, nenhuma justificação delas é impossível sem presumirmos a indução.

Sob a interpretação ortodoxa de Hume que Bahnsen aceitou, supõe-se que Hume demonstrou que os argumentos probabilísticos – que descrevi acima como argumentos indutivos – são injustificados. Entretanto, é uma questão em aberto se Hume sustentou esta idéia contemporânea. Uma análise detalhada das obras de Hume mostrou que por “argumento probabilístico” Hume quis dizer um certo tipo de argumento dedutivo (Stove, 1966). Hume acreditou que todos os argumentos pressupõem a uniformidade da natureza, mas ele não tentou mostrar que os argumentos probabilísticos no sentido contemporâneo são injustificados. Portanto, recorrer a Hume prova muito pouco sobre a questão dos argumentos indutivos, isto é, probabilísticos, serem ou não justificados.

Mesmo se Hume estivesse falando sobre o que atualmente é chamado de indução, outros filosófos argumentaram que o problema tradicional da indução — por que seria racional utilizar a indução — é um pseudo-problema que deveria ser dissolvido, não solucionado. Alguns filósofos tem sustentado que o problema tradicional da indução baseia-se numa confusão linguística (Strawson, 1966, Edwards, 1965). Se refletirmos cuidadosamente sobre o que queremos dizer com “racional”, veremos que negar a racionalidade da indução é puro nonsense. Mais recentemente, foi defendido que lançando mão de princípios incontroversos da teoria das probabilidades o ceticismo indutivo pode ser refutado por uma redução ao absurdo (Gemes 1983). Em outras palavras, de acordo com este argumento, a postura do ceticismo indutivo não pode ser formulada coerentemente. Se válidos, estes argumentos mostram que o ceticismo indutivo é uma concepção que não merece ser levada a sério. Bahnsen não responde a estes argumentos gerais contra o ceticismo indutivo. Na verdade, ele aparenta não estar sequer ciente de sua existência. Além disso, o ceticismo de Russell sobre os argumentos indutivos também sofreu golpes pesados. Filósofos assinalaram confusões justamente nos trechos das obras de Russell que Bahnsen citou com aprovação (Wills, 1965; Edwards, 1965).

Mesmo alguns dos filósofos que aceitaram a idéia de que Hume mostrou que os argumentos indutivos são injustificados desafiariam a idéia endossada por Bahnsen de que a ciência pressupõe a justificação da indução. Eles argumentariam que a prática de basear as ações de alguém em argumentos indutivos pode ser justificada pragmaticamente: se existem quaisquer generalizações indutivas verdadeiras, o uso consistente da indução as descobrirá a longo prazo (Reichenbach, 1996). Conquanto esta abordagem não justifique a indução ela providencia uma razão prática para continuarmos a usar este modo de raciocínio. Outros filósofos sustentam que a exigência de justificar a indução pode ser atenuada mostrando que ela é sem sentido, e eles afirmam que uma justificação trivial para a ação indutiva pode ser oferecida: utiliza-se a indução porque ela facilita a passagem pela vida e, apesar de não sabermos se este efeito da indução continuará, a única maneira de descobrir isso é continuar a utiliza-lo (Madden, 1960).

Se esta ou outras abordagens do ceticismo indutivo são viáveis é uma questão em aberto ainda em debate na literatura filosófica. Até que esta controvérsia seja resolvida, tanto a concepção de Bahnsen de que a indução pode ser desafiada como sua presunção de que a ciência é impossível sem a indução permanecem duvidosas.

O fracasso prima facie do teste de inteligibilidade
Deixando de lado o fato de que a veracidade do ceticismo indutivo e sua relevância para a ciência é muito mais discutível do que Bahnsen imagina, a idéia de que a indução pressupõe o Deus cristão é em si mesma implausível. Lembre-se que Bahnsen sustenta que dizer que A pressupõe B é dizer que não poderíamos “dar sentido” a A sem presumir B. Agora considere o que significaria dizer que ser uma irmã pressupõe ser do sexo feminino. Não faria sentido alguém ser uma irmã a menos que se pressuponha que este alguém seja do sexo feminino. Utilizando este teste, ser uma irmã de fato pressupõe ser do sexo feminino. Mas compare este caso com a afirmação de que ser racional pressupõe ser humano. Este último parece falhar no teste pois para que haja sentido em dizer que alguém é racional não é necessário pressupor que este alguém seja humano. De fato, várias histórias de ficção científica que presumem a racionalidade de formas de vida alienígenas fazem sentido perfeitamente.

O que dizer sobre a alegação de que a indução pressupõe o Deus cristão? Não há nada de absurdo em imaginar que a inferência indutiva é justificada e que o Cristianismo é falso. Não precisamos pressupor o Cristianismo para que a indução faça sentido. Na verdade, que nenhuma presunção desse tipo é necessária seria a posição de muitos cristãos. De modo que a afirmação de Bahnsen falha no teste de “inteligibilidade” e deve ser rejeitada. Naturalmente, é possível que existam argumentos sutis e sofisticados que provam a veracidade da alegação de Bahnsen. Mas, se existem, permanecem inéditos.

A cosmovisão cristã responde aos céticos indutivos?
Até agora mostrei que o ceticismo indutivo foi questionado de várias maneiras diferentes e independentes do Cristianismo. Agora consideremos se o Cristianismo oferece uma justificação da indução e responde ao cético indutivo.

Um argumento sugere que os seres humanos jamais poderiam estar seguros da uniformidade da natureza  sob a cosmovisão cristã. Segundo Bahnsen e outros apologistas cristãos, é possível que Deus tenha razões moralmente suficientes para permitir o mal no mundo apesar de desconhecermos quais seriam estas razões. Por exemplo, Deus poderia ter uma razão moralmente suficiente para permitir o terremoto de Lisboa que matou milhões de pessoas inocentes apesar de não sabermos qual foi.

Agora imagine que certas regularidades da natureza deixem de vigorar no futuro. Suponha que após o ano 2018 todas as esmeraldas serão azuis e todos os rubis serão verdes. Se Deus pode ter uma razão moralmente suficiente para o terremoto de Lisboa, certamente ele pode ter uma razão suficiente para causar tal desvio. Na verdade, ne medida em que, de acordo com os cristãos, todo o mal presente no mundo pode ser explicado dizendo que Deus tem uma razão moralmente suficiente para causa-lo ou permiti-lo, igualmente qualquer desvio na regularidade da natureza poderia ser explicado postulando que Deus possui uma razão desconhecida para causar estes desvios. A bem da verdade, não temos notícia de tais desvios executados por Deus no passado mas isto não é razão para supormos que Ele não os fará no futuro: Deus não ter tido uma razão suficiente para romper a uniformidade da natureza até agora não significa que ele não a terá no futuro. Deus não estaria nos enganando uma vez que ele nunca nos assegurou que todas as nossas expectativas sobre o futuro revelariam-se verdadeiras.

Noé e a continuidade das estações
Qual seria a resposta de Bahnsen a esta crítica? Ele recorreu algumas vezes à passagens das Escrituras para justificar a crença na regularidade da natureza; por exemplo, ele citou os versículos 20 a 22 do capítulo 8 do livro do Genêsis, em que Deus disse a Noé que Ele continuaria as estações (Bahnsen, audiocassette #1). Existem, contudo, pelo menos quatro problemas básicos com estes apelos escriturais. Primeiro, existe a questão de se deveríamos acreditar nestas passagens. Por que imaginar que Noé existiu? E supondo-se que ele tenha existido, por que pensar que ele fez um pacto com Deus pela continuidade das estações? Segundo, existe a questão de por que deveríamos interpretar estas passagens como significando que a natureza manterá sua uniformidade no sentido vulgar habitual. Afinal, as estações podem continuar mesmo com mudanças colossais na regularidade da natureza. No inverno a neve poderia ser verde, na primavera as flores poderiam ser inodoras, no verão os gramados poderiam ser róseos, e por aí vai. Deus não ofereceu detalhes sobre como manteria as estações. Terceiro, a promessa de Deus é compatível com o caos indutivo na maior parte do universo. Deus disse que “Enquanto a terra durar, sementeira e sega, e frio e calor, e verão e inverno, e dia e noite, não cessarão” (Gênesis 8:22) e esta passagem é compatível com um estado de coisas em que as presentes leis da natureza não vigoram fora dos ambientes terrestres. Quarto, por que supor que Deus necessariamente manteria seu pacto com Noé? Deus pode quebrar uma promessa desde que tenha uma razão moralmente suficiente para faze-lo. Se isentamos seres humanos por quebrarem promessas quando tem boas razões, por que não isentaríamos Deus? Além disso, Deus pode não ser responsável pelas falhas nas regularidades da natureza. Satanás pode ter decidido trabalhar seus métodos malévolos trazendo o caos indutivo ao mundo e Deus não poderia intervir sem privar Satanás de seu livre-arbítrio.

Aprendizado sem Indução
Outra razão que Bahnsen ofereceu para acreditar que o problema da indução é solucionado pela aceitação da cosmovisão cristã é que, sem a regularidade da natureza, os seres humanos não poderiam obter conhecimento algum; todavia, Deus quer que tenhamos conhecimentos (Bahnsen, audiocassete #3). Mas é a regularidade da natureza – a pressuposição de que todas as atualmente conhecidas regularidades válidas prevalecerão ao longo do tempo e do espaço — necessária para o conhecimento humano? As razões oferecidas por Bahnsen aqui são tão problemáticas quanto as do caso do pacto de Noé com Deus. Antes de mais nada, na cosmovisão cristã Deus é onipotente. Mas então, haveriam outras maneiras além da indução baseada na constância da natureza pelas quais os seres humanos poderiam obter conhecimento. Por exemplo, Deus poderia dotar os seres humanos com um conhecimento inato do futuro. Alternativamente, Deus poderia nos dar superpoderes proféticos ou Ele poderia revelar diretamente para nós o que o futuro seria.

Além disso, a ausência de uniformidade na natureza é compatível com a obtenção de conhecimento através da indução na medida em que existem uniformidades locais na Terra e em seus ambientes. O caos indutivo poderia reinar no universo, mas na medida em que as regularidades continuassem na Terra, os humanos poderiam aprender a partir da experiência. Ademais, a obtenção de conhecimento através da indução é compatível mesmo com falhas locais das atuais leis na medida em que este não é completo. Imagine, por exemplo, que após 1998 apenas leis estatísticas fossem válidas em macroescala de modo que, por exemplo, o fogo fosse quente em apenas 98% do tempo. Isto seria o bastante para que aprendêssemos a não nos queimarmos. Na verdade, mesmo um colapso total em macroescala seria compatível com o aprendizado através da experiência na medida em que este colapso não ocorresse com muita frequencia e não fosse demasiado disruptivo. Assim, por exemplo, após 1998 os rubis poderiam alterar aleatoriamente sua coloração e os cães poderiam eventualmente metamorfosear-se em gatos conquanto todas as outras regularidades persistissem. Claramente, neste caso aprenderíamos a partir da experiência não obstante a constância da natureza como compreendida normalmente não mais existisse.

Conclusão
A parte indutiva do ATD fracassa. Eu não mostrei que os novos argumentos desenvolvidos pelos discípulos de Bahnsen para a parte indutiva podem ser mais bem sucedidos do que os que avaliei aqui. Contudo, esta é uma possibilidade improvável considerando-se a fraqueza dos argumentos utilizados por Bahnsen ao longo de muitos anos. Apesar de não ter mostrado aqui que as partes referentes à lógica e à ética carecem igualmente de solidez, os argumentos apresentados em meu debate com Frame e meu diálogo com Butler sugerem que sim. Por fim, o fracasso de qualquer aspecto do ATD não mostra que Deus não existe. O que este fracasso mostra é que ele não pode ser utilizado para acusar os ateus de inconsistência, e menos ainda para respaldar a crença na existência do Deus cristão.

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