Publicado por David Deming na obra Science and Technology in World History
Traduzido por Suriani

As Madrasas (c. séc. XI dC)
Embora filósofos como al-Kindi e Averróis tenham tentado harmonizar a filosofia e a ciência gregas com o Islã, em última análise, eles falharam. No século XI, os estudos helênicos na civilização islâmica estavam em decadência, e até o final do século XII estavam essencialmente extintos.

Escola de Atenas – Rafael
Afresco entre 1509 e 1510 (500 x 700 cm)
Averróis está no canto inferior esquerdo, usando verde e inclinado para frente, logo atrás de dois homens calvos sentados.

As áreas tradicionais de aprendizagem no Islã eram consideradas como sendo “gramática, poesia, história, teologia e direito.” [1] Disciplinas como filosofia, matemática e astronomia sempre foram consideradas como produções importadas de uma cultura estrangeira. “As ciências estrangeiras nunca deixaram de ser vistas pela grande maioria dos muçulmanos como inúteis, alienígenas e, talvez, perigosas.” [2] O abismo entre a ciência grega e o Islã “reapareciam ao longo da história islâmica como um tipo de falha geológica” [3] que não poderia ser superada.

Na Europa medieval, a ciência serviu a teologia. Mas a autoridade religiosa nunca foi cimentada na sociedade ocidental da mesma forma contundente que era na civilização islâmica. Depois que a autoridade central da Igreja Católica foi quebrada pela Reforma no século XVI, a prática das ciências na Europa Ocidental cresceu explosivamente.

Mas “o Islã era uma nomocracia,” [4] um “sistema de governo baseado em um código legal”, [5] e este código legal derivava inteiramente da lei religiosa. Autoridades religiosa e secular eram uma e a mesma coisa. Na Europa, a lei foi influenciada pelo cristianismo, mas não foi determinada ou controlada exclusivamente pela religião. A liberdade religiosa significava liberdade intelectual, e as ciências foram autorizadas a desenvolver.

Um fator importante na perda de vigor da ciência e da filosofia grega no Islã foi a exclusão desses assuntos por parte das instituições de ensino superior, as madrasas. [6] Uma madrasa é “uma instituição de ensino superior onde as ciências islâmicas são ensinadas.” [7] Neste contexto, a expressão “ciências islâmicas”, praticamente exclui a filosofia racional e as ciências herdadas da tradição grega. “A madrasa era a personificação da ciência religiosa ideal do Islã, da lei, e da orientação religiosa ideal do Islã, o tradicionalismo.” [8] “A madrasa sunita foi criada essencialmente para a finalidade de formação de estudantes na lei sagrada e de outras ciências religiosas; seu programa consistiu principalmente do Alcorão, Hadith, exegese, gramática e literatura árabes, direito, teologia e oratória.” [9]

As madrasas evoluiram de cursos de ensino ministrados nas mesquitas, e tornaram-se ascendentes no século XI. [10] As madrasas foram estabelecidos “para ensinar os sistemas de Fiḳh”, [11] onde Fiḳh é a ciência da lei religiosa islâmica. Qualquer instituição privada que ensinasse as ciências “estrangeiras” era eliminada pelas leis que regiam os waqfs. [12] Um waqf é um dom de caridade na lei islâmica. Um indivíduo fazendo uma atividade filantrópica ou waqf tinha grande liberdade para determinar seus termos e condições, mas havia uma exceção importante: “os termos do instrumento do waqf não podiam de forma alguma contrariar os princípios do Islã.” [13] Assim, os tradicionalistas e conservadores religiosos foram exclusivamente favorecidos. As ciências e a filosofia racional “estrangeiras” foram completamente excluídas de todas as instituições de ensino superior. [14]

Al-Ghazali (1058–1111 dC)
Um dos fatores mais importantes para o declínio da filosofia e da ciência islâmicas foi o trabalho de al-Ghazali (AD 1058-1111). Al-Ghazali era um “jurista, teólogo, filósofo e místico.” [15] Seus trabalhos mais importantes foram O Salvador do Erro, [16] um relato autobiográfico de sua vida intelectual, e A Incoerência dos Filósofos, [17] uma refutação do aristotelismo neoplatônico.

O pai de al-Ghazali não obteve muito êxito em em sua sede por conhecimento, e ele usou as suas economias como um meio de garantir a educação de seus filhos. Al-Ghazali estudou direito, que no Islã é inseparável da religião. Desde cedo, al-Ghazali estava destinado a ser um estudioso. Ele explicou, “a sede por conhecimento era inata em mim desde a mais tenra idade, era como uma segunda natureza implantada por Deus, sem qualquer vontade de minha parte.” [18]

Durante seu estudo de jurisprudência, al-Ghazali “tomou muitas notas, mas negligenciou a gravação em sua memória daquilo que ele havia escrito.” [19] Durante uma viagem, ele foi assaltado por ladrões, e suas notas foram roubadas. Em pânico, al-Ghazali perseguiu os bandidos, exigindo o retorno de suas notas de estudo. Os ladrões ficaram surpresos e parcialmente divertidos. “O chefe ladrão perguntou-lhe o que eram essas notas. Al-Ghazali com grande simplicidade respondeu, ‘Elas são os textos naquela mala; eu viajei com o intuito de ouvi-las e escrevê-las e conhecer a ciência nelas.’ Por causa disso, o chefe ladrão riu e disse: ‘Como você pode professar que conhece a ciência nelas quando nós as tiramos de você e te despojamos do conhecimento e aqui está agora sem nenhuma ciência?’ Mas ele deu as notas de volta. ‘E’, diz al-Ghazali, ‘esse homem foi enviado por Deus para me ensinar.’ “ [20]

Al-Ghazali estudou por mais vários anos, tendo o cuidado de submeter suas lições à memória. Ele era um aluno não só da lei islâmica, mas também se dedicava à “teologia dialética, ciência, filosofia, [e] lógica.” [21] Al-Ghazali conheceu “Nizam al-Mulk, vizir do sultão do Império Seljúcida Malik-Shah.” [22] Nizam al-Mulk “foi o maior homem do Império e seu real governante … [Se ele] não foi o primeiro a criar as madrasas, pelo menos ele as ampliou bastante.” [23]

Em 1091 dC, [24] com a idade de 33, al-Ghazali foi “nomeado para ensinar na Madrasa de Bagdá.” [25] Sua posição era de prestígio, e al-Ghazali, apesar de relativamente jovem, rapidamente adquiriu uma reputação como estudioso e professor. Nesse momento, al-Ghazali intensificou seus estudos. Ele escreveu mais tarde: “Eu tenho interrogado as crenças de cada seita e examinado os mistérios de cada doutrina, a fim de distinguir a verdade do erro e a ortodoxia da heresia …. Não há filósofo cujo sistema não tenho sondado, nem teólogo cuja doutrina eu não tenha estudado.” [26]

Al-Ghazali desejava a verdade certa, não a provável. “Certeza é o conhecimento claro e completo das coisas, tal conhecimento, como não deixa margem para dúvidas nem possibilidade de erro e conjecturas, não permite que reste espaço na mente para o erro … formas de conhecimento … [que não são impermeáveis] à dúvida não merecem qualquer confiança.” [27]

O jovem estudante começou a analisar sistematicamente a base epistemológica do conhecimento. Ele dividiu as formas possíveis de adquirir conhecimento em três categorias: percepção dos sentidos, razão e revelação.

Inicialmente, a percepção sensorial parecia para al-Ghazali ser o caminho mais certo para obter a verdade. Mas um pouco de reflexão intelectual o convenceu de que os sentidos não eram confiáveis.

“O resultado de um exame cuidadoso foi que a minha confiança neles [os sentidos] foi abalada. Nossa visão, por exemplo, talvez a melhor praticada entre todos os nossos sentidos, observa uma sombra, e encontrando-a aparentemente estacionária a declara desprovida de movimento. Observação e experiência, no entanto, mostram posteriormente que uma sombra não se move de repente, é verdade, mas gradualmente e imperceptivelmente, de modo que ela nunca é realmente imóvel. Outro exemplo, o olho vê uma estrela e acredita ser grande como uma peça de ouro, mas cálculos matemáticos provam, pelo contrário, que são maiores do que a terra. Tais noções, e todas as outras que os sentidos declaram ser verdade, são posteriormente desmentidas e condenadas por falsidade de forma irrefutável com o veredito da razão. Então, refleti em mim mesmo: “Já que não posso confiar na evidência de meus sentidos, eu devo confiar apenas em noções intelectuais baseadas em princípios fundamentais, como os axiomas seguintes: Dez é mais do que três. Afirmação e negação não podem coexistir. Uma coisa não pode ao mesmo tempo ser criada e eterna, viva e morta simultaneamente, ao mesmo tempo necessária e impossível.” [28]

Mas o reconhecimento de que a razão era um método de obter conhecimento superior, ou mais confiável do que a percepção, sugeriu a possibilidade de algo acima da razão humana. Se a razão era superior à percepção, talvez existisse outra epistemologia [a revelação], que fosse superior à razão. “Talvez exista acima da razão um outro juiz, que, se aparecesse, condenaria a razão por falsidade, assim como a razão tem refutado [a percepção].” [29]

Al-Ghazali considerou a possibilidade da terceira forma de saber, a que pode ser superior ao raciocínio, fosse a comunhão mística ou êxtase vivido pelos sufistas. Ela era “um estado em que, absorvidos em si mesmos e na suspensão de percepções sensoriais, eles têm visões além do alcance do intelecto.” [30]

Conhecida também como iluminação, comunhão de êxtase, ou conhecimento intuitivo, a comunhão mística é uma experiência “de um poder supremo, pleno, e interior, no qual todas as coisas são uma só.” [31] A comunhão mística é a base da revelação, da profecia, e da religião. É uma das forças mais poderosas da história da humanidade, e também uma das menos compreendidas.

A experiência mística era o elemento central do sufismo, uma seita islâmica que se originou na Pérsia do século IX dC “como uma espécie de reação contra o monoteísmo e o formalismo rígidos do Islã.” [32] “A palavra Sufismo é geralmente assumida como sendo derivada de suf (lã), em referência à roupa simples dos primeiros místicos ascéticos.” [33] O desenvolvimento do sufismo no Islã pode ter sido influenciado pela tradição do misticismo em outras religiões, incluindo o cristianismo. Mas o misticismo encontrou um lar natural no Islã, já que o próprio Maomé era um místico e o Corão uma revelação de Deus.

Correspondentes às três epistemologias reconhecidas por al-Ghazali, haviam três diferentes grupos de homens que professavam conhecer a verdade. Estes foram (1) os ortodoxos “teólogos escolásticos, que professam seguir a teoria e a especulação, (2) os filósofos, que professam contar com a lógica formal, [e] (3) os sufistas, que se chamam os eleitos de Deus e possuidores de intuição e conhecimento da verdade por meio do êxtase.” [34]

Al-Ghazali examinou criticamente as reivindicações de cada grupo. Ele rapidamente eliminou os teólogos ortodoxos. A base de suas crenças era simplesmente a autoridade e a tradição. Al-Ghazali explicou, “um método de argumentação como este tem pouco valor para aquele que só admite verdades auto-evidentes.” [35]

As reivindicações dos filósofos tiveram que ser levadas mais a sério. Assim, al-Ghazali “procedeu do estudo da teologia escolástica para o da filosofia.” [36] Ele passou dois anos envolvido em um estudo sistemático dos diferentes sistemas filosóficos. Para entender completamente a filosofia, al-Ghazali se sentiu obrigado a “fazer um estudo profundo do que é a ciência; [36] deve ser igual, ou melhor, deve superar, aqueles que sabem mais do mesmo, de modo a penetrar nos segredos do mesmo desconhecidos para eles.” [37]

Depois de estudar filosofia por dois anos, al-Ghazali disse: “então passei cerca de um ano meditando sobre esses sistemas depois de os ter entendido completamente … desta forma eu adquiri um conhecimento completo de todos os seus [dos filósofos] subterfúgios e de suas sutilezas, do que era verdade e o que era ilusão em si.” [38]

A filosofia não forneceu a al-Ghazali a verdade certa que ele procurava. Então ele virou-se aos ensinamentos místicos dos sufistas. Mas isso não poderia ser aprendido em um estudo acadêmico. A comunhão mística era algo que tinha de ser experimentada. Al-Ghazali concluiu, “eu vi que, a fim de entendê-lo [o Sufismo] completamente, deve-se combinar a teoria com a prática … tornou-se claro para mim que a última etapa não poderia ser alcançada por mera instrução, mas apenas pelo transporte, pela êxtase, e a transformação do ser moral.” [39]

Al-Ghazali foi assolado por uma crise existencial que afetou sua saúde física. Ele perdeu o apetite, a energia e a vontade de viver, pois havia perdido a fé nos ensinamentos ortodoxos do Islã. Al-Ghazali não acreditava mais que o Islã podia ser apoiado pelo exercício da razão, e ele foi engolido por sua própria e insustentável hipocrisia como professor de doutrina ortodoxa que ele considerava ser insuportável. “Eu percebi que estava à beira de um abismo, e que sem uma conversão imediata eu seria condenado ao fogo eterno.” [40]

Al-Ghazali decidiu desistir de sua prestigiada posição de ensino, e ir morar com os sufistas. Mas a sua determinação falhou. “No dia seguinte eu desisti da minha resolução.” [41] Ele descobriu que ele era incapaz de “desistir de sua boa posição, este posto honroso isento de problemas e de rivalidade, este assento de autoridade a salvo de ataque.” [42]

Mas a tempestade continuou a assolar. Al-Ghazali foi “despedaçado pelas forças opostas das paixões terrenas e das aspirações religiosas … [Mas] a minha vontade cedeu e eu me entreguei ao destino. Deus fez um impedimento para prender de minha língua e me impediu de dar aulas. Em vão eu desejava, no interesse dos meus alunos, continuar dando aulas, mas minha boca ficou muda.” [43]

Al-Ghazali disse finalmente: “deixei Bagdá, desistindo de toda minha minha fortuna.” [44] No limiar de uma brilhante carreira, ele simplesmente foi embora. Al-Ghazali deixou não somente o trabalho como professor, mas também uma família e filhos. Ele viajou para a Síria, onde dedicou dois anos à “aposentadoria, meditação e exercícios de piedade.” [45]

Entre os sufistas místicos, al-Ghazali descobriu a verdade certa que ele estava procurando na forma de revelação divina. “Eu vi Deus em um sonho …. Ele disse … ‘abandone tuas regras formais … Eu derramarei sobre ti luzes de proteção da Minha santidade, para aproveitá-las e aplicás-te a ti mesmo. ‘ Então eu acordei com grande alegria.” [46]

De acordo com al-Ghazali, a comunhão de êxtase vivida pelos sufistas não pode ser descrita. “Eles [os sufistas] vêm para ver em estado de vigília os anjos e as almas dos profetas; eles ouvem as suas vozes e sábios conselhos. Por meio desta contemplação de formas e imagens celestiais eles se elevam gradualmente a alturas que a linguagem humana não podem alcançar, e que não se pode sequer indicar sem cair em grandes e inevitáveis erros.” [47]

A inspiração divina estava acima da razão humana. Não poderia ser descrita ou explicada, apenas vivenciada. “Aquele que não chegar à intuição dessas verdades por meio do êxtase, sabe apenas o nome de inspiração.” (NdE: A uma altura dessas, acho que ninguém tem mais dúvidas de que os sufistas usavam e abusavam de alucinógenos em suas comunhões místicas de êxtase, substâncias hoje consideradas maléficas mas cujo uso sempre caminhou entre o sagrado e o profano ao longo do espaço e do tempo.)

Qualquer filósofo que negasse a realidade da comunhão mística era simplesmente ignorante. “Uma nova faculdade de visão além da razão e em um nível superior é dada a ele, pela qual ele percebe as coisas invisíveis, os segredos do futuro e outros conceitos tão inacessíveis à razão quanto os conceitos de razão são inacessíveis à mera discriminação e àquilo que é percebido pela discriminação aos sentidos. Assim como o homem possuído apenas pela discriminação rejeita e nega as noções adquiridas pela razão, certos racionalistas rejeitam e negam a noção de inspiração. É uma prova de sua profunda ignorância.” [48]

Al-Ghazali tinha agora um círculo completo. Ele podia voltar para suas antigas crenças ortodoxas, porque haviam sido comprovadas pela comunhão mística. “Quando verificamos a real natureza da inspiração e avançamos para o estudo sério do Alcorão e das tradições, sabemos então que certamente Maomé é o maior dos profetas.” [49]


A autoridade das Escrituras do Alcorão deveria ser aceita. “Acreditar nos Profetas é admitir que há acima da inteligência uma esfera na qual são reveladas à visão interior verdades para além do alcance da inteligência, assim como coisas vistas não são apreendidas pelo sentido da audição, nem as coisas são entendidas pelo sentido do toque.”

Tendo intuição direta de Deus, al-Ghazali já não tinha qualquer necessidade de filosofia, razão, ou de ciência. Ele percebeu que a fonte de toda a moralidade é a mística da experiência direta de uma realidade superior espiritual e que moralidade, por sua vez, é a base subjacente de toda a civilização humana. Seguiu-se no raciocínio de al-Ghazali que a filosofia e a ciência só poderiam levar à imoralidade e ao colapso final da civilização humana.

Al-Ghazali particionou as “ciências filosóficas” em seis divisões: matemática, lógica, física, metafísica, política e filosofia moral. [50] A melhor delas, a matemática, era neutra, “não prova nada a favor ou contra a religião.” [51] Al-Ghazali não discutiu com as verdades matemáticas. Ele admitiu que “ela repousa sobre uma base de provas que, uma vez conhecida e compreendida, não pode ser refutada.” [52]

Mas o estudo da matemática foi condenado por al-Ghazali. A matemática tende a validar a filosofia em geral, e alguns ou a maioria dos matemáticos eram ímpios. “Quem estuda esta ciência [matemática] admira a sutileza e a clareza de suas provas. Sua confiança na filosofia cresce, e ele acha que todos os seus departamentos são capazes da mesma clareza e solidez de prova que a matemática.” [53] Assim, a pessoa que estuda matemática falsamente conclui que “se houvesse verdade na religião, ela não teria escapado daqueles que têm mostrado tanta agudeza de intelecto no estudo da matemática.” [54]

Da mesma forma, al-Ghazali encontrou “nada [intrinsecamente] censurável” [55] na ciência da lógica. Mas o seu estudo e cultivo deveriam ser evitados, pois “um estudante que está encantado com os métodos de prova da lógica, ouvindo seus professores acusados de irreligião, acredita que esta irreligião repousa em provas tão fortes como as de lógica, e imediatamente, sem tentar o estudo da metafísica, compartilha seu erro.” [56]

Al-Ghazali reservou sua mais forte condenação para a metafísica. “Este é o fecundo terreno fértil dos erros dos filósofos.” [57] Ele identificou 20 erros cometidos pelos filósofos. Dezessete deles foram apenas heresia, mas três foram mais graves. Os erros “irreligiosos” significativos foram (1) a negação da ressurreição física, (2) a crença de que Deus não estava ciente das circunstâncias específicas e detalhadas sobre a Terra, apenas das generalidades, e (3) a crença de que o cosmos era eterno e, portanto, não criado ex nihilo. [58]

Em particular, al-Ghazali desejava refutar a metafísica neoplatônica de al-Farabi e Avicenna. [59] Esta foi a principal motivação para ele escrever o seu livro mais influente, A Incoerência dos Filósofos. [60]

“No Tahafut [Incoerência dos Filósofos], ele feriu o quadril e a coxa dos filósofos; ele virou … suas próprias armas contra eles, e mostrou que com suas premissas e métodos nenhuma certeza poderia ser alcançada. Nesse livro, ele vai ao extremo do ceticismo intelectual, e, 700 anos antes de Hume, ele corta a causalidade com a ponta de sua dialética e proclama que não podemos saber nada de causa ou efeito, mas simplesmente que uma coisa se segue a outra …. Ele demonstra que eles [os filósofos] não podem provar a existência do criador, ou que o criador é um só; que eles não podem provar que ele é incorpóreo, ou que o mundo tem algum criador ou causa em tudo; que eles não podem provar a natureza de Deus, ou que a alma humana é uma essência espiritual. Ele concluiu que não há base intelectual deixada para a vida …. Estamos jogados de volta na revelação, aquela dada imediatamente por Deus para a alma individual ou aquela dada através de profetas. Todo o nosso conhecimento real é derivado destas fontes.” [61]

A afirmação mais infame na Incoerência foi a negação de al-Ghazali de causa e efeito. Ele alegou que cada evento acontece pela vontade imediata e especial de Deus, não pela ação impessoal da lei física.

Al-Ghazali argumentou que todas as tentativas dos filósofos de demonstrar causalidade estavam baseadas na correlação. Eles observavam que uma coisa era seguida de outra, e inferiam a causalidade. Mas, na verdade, o que haviam observado era simplesmente correlação. Causalidade era uma mera inferência.

Só porque observamos o algodão sendo queimado quando entra em contato com o fogo, não implica necessariamente que isso vai ocorrer na próxima vez que o experimento for tentado. A queima foi causada pela vontade de Deus. “Aquele que decreta a queima criando negritude no algodão, [provocando] separação em suas partes, e o transformando em cinzas, é Deus, ou através da mediação de seus anjos ou sem mediação. Pois o fogo, que é inanimado, não tem ação. E qual prova há de que o fogo é o agente? Eles [os filósofos] não têm nenhuma prova que não seja a observação da ocorrência do incêndio no [momento] de contato com o fogo … existência ‘com’ uma coisa não prova que ela existe ‘por’ isso.” [62]

Al-Ghazali foi respondido por Averróis, que escreveu um livro intitulado A Incoerência da Incoerência. [63] Sistematicamente, ponto por ponto, e página por página, Averróis tentou refutar alegações al-Ghazali.

O Triunfo de Santo Tomás – Andrea de Bonaiuto (1343 – 1377)
Afresco entre 1365 e 1368.
Averróis está no centro da pintura, logo abaixo do homem vestido de preto, usando uma veste amarela e apoiado por um livro vermelho, provavelmente de Aristóteles.

Averróis argumentou que a negação de al-Ghazali de causalidade não era nada além de sofismas e que, se fosse para aceitá-lo, não poderia haver conhecimento. [64] “Inteligência não é nada senão a percepção das coisas com as suas causas, e nisso ela se distingue de todas as outras faculdades de apreensão, e aquele que nega as causas deve negar o intelecto … a negação da causa implica a negação do conhecimento, e a negação do conhecimento implica que nada neste mundo pode realmente ser conhecido.” [65]

Mas foi al-Ghazali quem prevaleceu. Até o final do século XII, o cultivo das ciências “estrangeiras” na civilização islâmica estava morto. A ortodoxia religiosa prevaleceu.

No século XIII, a atitude típica muçulmana em relação à filosofia foi expressa por ibn Salah (1181-1245 dC). [66] Ibn Salah “desistiu do estudo da lógica”, porque “provou ser muito difícil para ele.” [67] Ele escreveu uma fatwa [parecer jurídico] que concluiu que não era permitido estudar filosofia, porque ela era “a fundação da loucura, a causa de toda a confusão, de todos os erros e de todas as heresias. A pessoa que se ocupa com isso torna-se daltônica às belezas da lei religiosa, que é apoiada por provas brilhantes. Aquele que estuda ou leciona filosofia será abandonado pelo favor de Deus, e Satanás irá dominá-lo.” [68] A lógica também foi condenada, porque “é um meio de acesso à filosofia.” [69]

Ibn Khaldun (1332-1406 dC), “o maior intelecto produzido pelo Islã medieval,” [70] proscreveu o cultivo das ciências. “As ciências (da filosofia, astrologia e alquimia) ocorrem nas civilizações. Elas são muito cultivadas nas cidades. O mal que elas (podem) fazer à religião é grande.” [71]

Ibn Khaldun concluiu que “a (opinião) que os (filósofos) detêm está errada em todos os seus aspectos,” [72] e que “devemos nos abster de estudar essas coisas, uma vez que tal (proibição) é parte (do dever do) muçulmano de não fazer o que não lhe diz respeito.” [73] Ele admitiu que a lógica tinha “uma única fruta: ela aguça a mente na apresentação ordenada de provas e argumentos, para que o hábito de discutir corretamente e com excelência seja obtido.” [74] Mas o estudo de lógica era cheioa de perigos. “Ninguém sabe o que ela pode fazer de mal … quem estuda [lógica] deve fazê-lo (só) depois de estar saturado com a lei religiosa e de ter estudado a interpretação do Alcorão e da jurisprudência. Ninguém que não tem conhecimento das ciências religiosas muçulmanas deve estudá-la. Sem esse conhecimento, uma pessoa dificilmente pode permanecer a salvo de seus aspectos perniciosos.” [75]

Assim, a filosofia e a ciência naturais foram rejeitadas pelo Islã. Mas as traduções islâmicas revelaram-se um importante veículo para a transmissão da ciência grega para a Europa. “O mundo latino era … uma taça vazia esperando para ser preenchida com a ambrosia do racionalismo grego.” [76]

Referências
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  2. Ibid.
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  6. Grant, E., 2007, A History of Natural Philosophy. Cambridge University Press, Cambridge, p. 90–92.
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  12. Grant, E., 2007, A History of Natural Philosophy. Cambridge University Press, Cambridge, p. 90–91.
  13. Makdisi, G., 1981, The Rise of Colleges, Institutions of Learning in Islam and the West. Edinburgh University Press, Edinburgh, p. 36.
  14. Ibid., p. 77–78.
  15. Fakhry, M., 1970, A History of Islamic Philosophy. Columbia University Press, New York, p. 244.
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  19. MacDonald, D. B., 1899, The Life of al-Ghazali, with Especial Reference to His Religious Experiences and Opinions. Journal of the American Oriental Society, vol. 20, p. 76.
  20. Ibid.
  21. Ibid., p. 77.
  22. Fakhry, M., 1970, A History of Islamic Philosophy. Columbia University Press, New York, p. 244.
  23. MacDonald, D. B., 1899, The Life of al-Ghazali, with Especial Reference to His Religious Experiences and Opinions. Journal of the American Oriental Society, vol. 20, p. 78–79.
  24. Fakhry, M., 1970, A History of Islamic Philosophy. Columbia University Press, New York, p. 244.
  25. MacDonald, D. B., 1899, The Life of al-Ghazali, with Especial Reference to His Religious Experiences and Opinions. Journal of the American Oriental Society, vol. 20, p. 79.
  26. al-Ghazali, 1917, The Rescuer from Error, in The Sacred Books and Early Literature of the East, vol. 6, Medieval Arabic, Moorish, and Turkish, edited by Charles F. Horne. Parke, Austin, and Lipscomb, New York, p. 103.
  27. Ibid., p. 104.
  28. Ibid., p. 105.
  29. Ibid.
  30. Ibid., p. 106.
  31. Encyclopædia Britannica, Eleventh Edition, 1911, Mysticism, vol. 19. Cambridge University Press, Cambridge, p. 123.
  32. Ibid.
  33. al-Faruqi, M. J., 2004, Sufism and the Sufi Orders, in Encyclopedia of the Modern Middle East and North Africa, 2nd Edition, edited by Philip Mattar, vol. 4. Macmillan Reference, New York, p. 2111.
  34. al-Ghazali, 1917, The Rescuer from Error, in The Sacred Books and Early Literature of the East, vol. 6, Medieval Arabic, Moorish, and Turkish, edited by Charles F. Horne. Parke, Austin, and Lipscomb, New York, p. 107–108.
  35. Ibid., p. 109.
  36. Ibid.
  37. Ibid., p. 109–110.
  38. Ibid., p. 110.
  39. Ibid., p. 121.
  40. Ibid., p. 122.
  41. Ibid.
  42. Ibid., p. 123.
  43. Ibid.
  44. Ibid., p. 124.
  45. Ibid.
  46. MacDonald, D. B., 1899, The Life of al-Ghazali, with Especial Reference to His Religious Experiences and Opinions. Journal of the American Oriental Society, v. 20, p. 89–90.
  47. al-Ghazali, 1917, The Rescuer from Error, in The Sacred Books and Early Literature of the East, vol. 6, Medieval Arabic, Moorish, and Turkish, edited by Charles F. Horne. Parke, Austin, and Lipscomb, New York, p. 125.
  48. Ibid., p. 127–128.
  49. Ibid., p. 129.
  50. Ibid., p. 112.
  51. Ibid.
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  54. Ibid., p. 113.
  55. Ibid., p. 114.
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  57. Ibid.
  58. Ibid., p. 116.
  59. Fakhry, M., 1970, A History of Islamic Philosophy. Columbia University Press, New York, p. 250.
  60. al-Ghazali, 1997, The Incoherence of the Philosophers, translated by Michael E. Marmura. Brigham Young Press, Provo, Utah.
  61. MacDonald, D. B., 1899, The Life of al-Ghazali, with Especial Reference to His Religious Experiences and Opinions. Journal of the American Oriental Society, v. 20, p. 103.
  62. al-Ghazali, 1997, The Incoherence of the Philosophers, translated by Michael E. Marmura. Brigham Young Press, Provo, Utah, p. 171.
  63. Averroes, 1954, Averroes’ Tahafut al-Tahafut (The Incoherence of the Incoherence), translated by Simon Van Den Berg, vol. 1 and 2. University of Cambridge Press for the Gibb Memorial Trust, Cambridge.
  64. Ibid., p. 318–319.
  65. Ibid., p. 319.
  66. Goldziher, I., 1981, The Attitude of Orthodox Islam Toward the “Ancient Sciences,” in, Studies on Islam, translated and edited by Merlin L. Swartz. Oxford University Press, New York, p. 206.
  67. Ibid., p. 205.
  68. Ibid.
  69. Ibid.
  70. Grant, E., 2007, A History of Natural Philosophy. Cambridge University Press, Cambridge, p. 89.
  71. Ibn Khaldun, 1958, The Muqaddimah, an Introduction to History, Chapter 6, Section 30, translated by Franz Rosenthal, vol. 3, Bollingen Series 43. Princeton University Press, Princeton, New Jersey, p. 246.
  72. Ibid., p. 250.
  73. Ibid., p. 251.
  74. Ibid., p. 257.
  75. Ibid., p. 257–258.
  76. Stock, B., 1978, Science, Technology, and Economic Progress in the Early Middle Ages, in Science in the Middle Ages, edited by David C. Lindberg. University of Chicago Press, Chicago, p. 39.

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